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Josué Montello e o barco de desliza pela superfície do lago

 

Como um dos mais antigos membros da Academia Brasileira de Letras, sou logo chamado pelo presidente Marcos Vilaça a falar sobre o escritor e professor Josué Montello na sessão da saudade. O que dizer de original sobre o autor de Os tambores de São Luís, falecido no último dia 15, aos 88 anos, depois de longa enfermidade? Todos têm uma palavra de carinho e respeito, contrariando uma preocupação de Josué: ''Veja lá, seu Arnaldo. Considero você como filho. Quando eu partir desta vida, não deixe ninguém me criticar indevidamente''. Tivemos cerca de 50 anos de convívio, incluindo os tempos de Manchete.


É curiosa essa determinação. Genuíno homem de letras, autor de 27 consagrados romances, Josué teve também uma intensa vida pública. Dirigiu a Biblioteca Nacional, foi Embaixador do Brasil na Unesco, presidiu durante dois anos a Academia Brasileira de Letras. Determinado em suas convicções, dono de prodigiosa memória, é claro que enfrentou espinhos pela trajetória, mas não deixou que eles ferissem a sua alma.


Tinha uma forma peculiar de desforra: os seus Diários (Manhã, Tarde, Noite e Entardecer). Se alguém o feria, dava a resposta com um verbete crítico num dos livros de memória. ''Assim me garanto na eternidade'', costumava dizer o escritor maranhense, que fez de São Luís a razão maior dos seus originalíssimos enredos.


A sua grande paixão humana foi a companheira Yvonne, que costumava datilografar os seus originais. Amava igualmente as filhas e netos. Anualmente, passava um mês em São Luís, cuidando da Casa que leva o seu nome, onde há uma biblioteca com todas as suas obras (mais de 120), em versões de diversas línguas. Lá estive quando ele comemorou os seus 70 anos. Ainda conservo em meu poder a pena branca que foi distribuída aos presentes. Quando soube da sua morte, procurei o mimo numa gaveta especial. Lá estava ele. Revi a face risonha de Josué, na brancura da pena, como a me cobrar: ''Não esqueça o nosso trato''.


Quando se brincava com a sua fecundidade, Josué a atribuía ao pouco sono com que foi brindado pela natureza: ''Durmo somente duas ou três horas por noite e isso é suficiente''. Acordava diariamente antes das 4h, esquentava o café que lhe era deixado de véspera pela bem-amada, e começava a trabalhar, com um pormenor: o fato de estar elaborando um novo romance não evitava que cultivasse, religiosamente, o hábito de responder a seus fãs. A todos dedicava uma palavra de carinho. Devia ter o maior fã-clube literário do país.


Vaidoso, sentiu uma sensação de plenitude quando recebeu a notícia de que o seu clássico Os tambores de São Luís fora considerado pela Unesco como um dos patrimônios culturais da humanidade. Raros são os brasileiros que alcançaram essa glória.


Ganhou o Prêmio de Literatura do Ministério da Cultura no ano de 1998. Embolsou R$ 25 mil, com o meio sorriso que lhe enfeitava os lábios, e jamais confessou o que fez do dinheiro. Sobre essa matéria, moita total.


Numa visita à Universidade de Estocolmo, senti natural curiosidade. Queria saber quais eram os autores brasileiros mais lidos pelos estudantes suecos. Entre os poucos preferidos, Josué Montello figurava com brilho, em virtude do seu Os tambores de São Luís, romance que retrata uma dinastia de negros, todos com o nome de Damião, ao longo de três séculos da movimentada história maranhense.


Josué nasceu em São Luís, no dia 21 de agosto de 1917, mas viveu no Rio desde 1936. Sempre manteve rigorosa fidelidade às suas origens. Escreveu com o sabor natural dos locais e dos sons da sua infância e juventude, daí o interesse universal das suas obras.


Lembro o inesquecível Adonias Filho. Um dia, na Academia Brasileira de Letras, me disse que, quando escrevia, sentia-se como se estivesse vivendo o transe de um médium. Assim também era com Josué Montello, com quem tive o privilégio de conviver muitos anos na redação de Manchete. O seu romance O baile da despedida (Nova Fronteira, 1992), que li de um só fôlego, reflete a facilidade incomparável com que as idéias desciam da cabeça à mão da escrita, ''ao mesmo tempo que todo o seu encadeamento me vem à consciência, refulgindo como o clarão''. Poucos romancistas brasileiros tinham a sua fluência, ''à feição do barco que desliza pela superfície do lago, tangido pela aragem matinal'' (expressão do próprio escritor).


Em companhia de Rachel de Queiroz, João Condé e José Sarney, visitamos a Casa de Cultura Josué Montello, na São Luís da sua permanente inspiração. No casarão da Rua das Hortas, totalmente restaurado, são promovidos estudos, pesquisas e trabalhos em literatura, artes, ciências sociais, história e geografia, utilizando-se de um acervo bibliográfico-documental de 30 mil peças.


Com toda naturalidade, enquanto mostrava pormenores da sua casa de cultura, Josué falava dos novos planos, como se a sua veia romanesca fosse mesmo infindável: ''Estou preparando outros romances. Enquanto houver fôlego, idéias não faltarão''.


A produção é impressionante, pois a quantidade não prejudicou em nenhum momento a indispensável qualidade em obras que se dividem em vários gêneros, como romance, ensaio, crônica, história, antologia, educação, novela etc. Por ele, os tambores de São Luís tocam de forma permanente, em sinal de respeito, reconhecimento e regozijo.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 22/03/2006