Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Já estamos nervosos?

Já estamos nervosos?

 

Sim, é no próximo domingo e se nota uma vibração intensa na atmosfera, pressente-se um coração palpitante em cada peito, o clima, está, digamos, elétrico. Não está, não? É, receio que não, estragou o começo do que pretendia ser uma esforçada tentativa de crônica sobre nossos brios cívicos, às vésperas da escolha dos nossos governantes mais próximos, dos que vão ser responsáveis por nossas cidades, nossos bairros, nossas ruas. Quer dizer, aqui no Rio, em certos lugares, cada vez mais numerosos, os governantes são escolhidos por métodos menos convencionais, mas nada neste mundo é perfeito e não se vai estragar a festa somente porque quem manda cada vez mais é o tráfico, até porque, segundo ouvimos, quem quer que seja eleito resolverá todos os problemas, não há motivo para preocupação.


Mas é verdade mesmo, não há vibração, pelo menos que eu perceba. Estranho, por que será? Nós, o povo, somos muito esquisitos. Está aí a democracia em marcha, com vasta distribuição de cestas básicas, notas de dez reais rasgadas e outras características peculiares a essa popular forma de governo que propagamos adotar e ninguém está fremindo, discutindo, questionando, antecipando a hora de dar sua contribuição para processo tão bonito, que sem o eleitor não significaria coisa alguma. Nós somos - Deus há de perdoar a inocente paráfrase do dito evangélico - o sal das urnas. Sem nós para legitimar o que uma considerável parcela dos futuros eleitos vai roubar, aviltar, vilipendiar, desviar, negligenciar, deturpar, degradar, dilapidar ou destruir às nossas custas, nada ia ter graça. Tanto assim que votar é um direito, mas é obrigatório, um desses achados inestimáveis com que contribuímos para o patrimônio da Humanidade, assim como o empréstimo compulsório, a contribuição provisória permanente e, agora - no terreno farmacêutico, mas de citação indispensável pela deslumbrante originalidade - o genérico de marca! Criaram-se os remédios genéricos para evitar os ônus das marcas, mas já se anunciam “genéricos só da marca Tal ou Qual”, uma maravilha mesmo. Se você vai usar genérico, escolha uma boa marca, qualquer um entende o raciocínio.


Mas não devo fazer digressões. Nosso direito é obrigatório porque, se não fosse, pelo menos o ladrão ou vira-casaca ou inepto ou sopeiro ou delinqüente (picareta não, picareta é privativo do Congresso Nacional e de uso do presidente) não poderia dizer que rouba em cima de milhares e milhares de votos. Não são todos, há muitas exceções, não me processem, já basta que eu sou escritor e jornalista, o primeiro ameaçado de extinção pelo acelerado declínio no número de pessoas que sabem distinguir um livro de uma caixa de sapatos, quanto mais ler, e o segundo mais cedo ou mais tarde arrolhado pelo Novo Jornalismo que se quer implantar na República. Mas era capaz de haver vereadores eleitos com uns 500 votos, no Rio e em São Paulo, quem sabe.


Admito que, na rua, o que mais me têm perguntado é como se faz para anular o voto (eles sabem e não contam, têm de legitimar, têm de legitimar), mas não vamos negar que há movimentação, é que às vezes a gente não nota. Por exemplo, me comoveu, na semana passada, a cena do querido jeitinho brasileiro que presenciei por acaso no edifício em que estava entrando. Uma senhora falava com o porteiro, dizendo que estava precisando de gente praticamente em todos os bairros da cidade, ele por favor mandasse quem pudesse ao escritório dela. Entrei no elevador e ela ainda me alcançou. Uma moça de ar mais ou menos humilde perguntou se a senhora estava falando sobre serviço, coisa hoje difícil de achar (aparentemente ela não ouviu o noticiário da TV, explicando como agora estamos entrando em regime de pleno emprego, esse pessoal é muito alienado). Sim, respondeu a senhora, mas temporário, só um dia. Garantido, quarenta reais. A moça estava interessada?


- Pra mim não - respondeu ela. - É pra minha mãe.


- Idosa? - perguntou a senhora, com o ar decidido das que nasceram para os grandes desafios.


- Não, não, ela está em muito boa forma.


- Ah, então pode.


- E qual é o serviço?


- Boca-de-urna. Quarenta reais. Manda ela me ligar, tá aqui o cartão, qual é o bairro em que ela vota?


- Botafogo.


- Excelente, estamos precisando. Telefona, telefona, tchau.


Boca-de-urna é prática proibida, mas quem inventou a proibição era uma besta em matéria de realidade nacional e vai ver era até comunista (como eles fazem falta, não tem mais quase ninguém em quem botar a culpa). E, na atual conjuntura, apesar da criação dos dez milhões de empregos e tudo mais, como é que se ia dispensar essa outra grande benesse da democracia, uma graninha extra no dia da eleição? O pessoal que faz essas leis parece que vive no mundo da lua. Quarenta reais pesam no orçamento de muita gente. De fato eu estava num edifício da Zona Sul, onde os preços costumam ser mais altos. Mas não conheço as sutilezas da tabela, o mercado só vive ficando nervoso e quem sabe se, daqui para o próximo domingo, o preço não dispara? É uma chance, o povo tem que ser empreendedor, é o que os homens vivem dizendo. E o esquema das urnas grávidas? Pois é, saiu no jornal, seriam urnas já cheias com os votos certos. Se não é invenção, temos aí uns empreguinhos de emprenhador de urna, lá vem mais estímulo para a economia. Enfim, eleição aqui é um barato. E isto nos lembra: só falta uma semana, precisamos escolher nossos candidatos com o cuidado de sempre, é tempo de unidunitê.


 


O Globo (Rio de Janeiro) 26/09/2004

O Globo (Rio de Janeiro), 26/09/2004