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Afonso Pena Júnior

A ARTE DE FURTAR E O SEU AUTOR

INTRODUÇÃO

                  “I am not satisfied with the casuistry by which the productions of one person are thus passed upon the world for the productions of another."

                                                                (Dr. Johnson, apud Boswell.)

1. O estudo, de que resultou este livro, não foi empreendido no propósito de demonstrar uma tese, mas no de apurar a verdade; não foi trabalho de advogado, adstrito a coligir e apresentar, do melhor modo possível, os elementos favoráveis a uma causa, mas trabalho de juiz na instrução rigorosa e no exame imparcial de uma ação de reivindicação da Arte de furtar, ação em que os litigantes conhecidos eram muitos, e podia algum desconhecido estar com o melhor direito.

Mesmo depois que a conclusão, a que cheguei afinal, e que aqui se demonstra, parecia irrecusável e definitiva, estive sempre atento aos argumentos em contrário, disposto e reexaminar toda a matéria, sem aferro à minha conclusão, que, a rigor, nem minha é, mas de Solidônio Leite, primeiro a aventá-la.

Jamais perdi de vista que o pesquisador tem de ser absolutamente sincero consigo mesmo, na solidão do gabinete ou do laboratório, para que o possa ser com o público, a quem deve a verdade, só a verdade, e toda a verdade.

De uma coisa, portanto, esteja o leitor tranquilamente certo: de que nada se ocultou, ou se inventou neste livro, para captar o seu aplauso.

2. Além deste requisito elementar da probidade, pouco mais pede, a bem dizer, uma crítica de atribuição, senão muita paciência, muita capacidade de atenção, o preciso discernimento para não se tomar a nuvem por Juno, e a vigilância da autocrítica para impedir que a vontade influa na razão, e que o pensamento se compasse pelo desejo.

Tenho, assim, dito, que não é tarefa que dê renome a quem a faz.

A paciência é indispensável às demoradas e enfadonhas pesquisas, de resultados tantas vezes negativos, espécie de trabalho de mineração, em que se desmontam montanhas, para se apurar uma pitada do metal precioso.

Não se calcula o paciente labor que tais investigações demandam: leitura, não uma, mas muitas e muitas vezes da obra em exame; das obras de cada um dos possíveis autores; das histórias e crônicas, impressas ou manuscritas, e do epistolário da época provável do livro; de tudo, enfim, que possa familiarizar o pesquisador com o cenário e os personagens da época. Sem essa leitura repetida, à proporção que o trabalho se adianta, muita coisa nos passa despercebida, cuja importância só se manifesta em virtude de aquisições posteriores à última leitura.

Sem a familiaridade com todos os autores, e o íntimo conhecimento de todo o ambiente que os influencia, não se estabelece o critério diferenciador ou a capacidade de distinguir, que é precioso instrumento das investigações de autoria.

Nas famílias numerosas, admiram-se, de regra, os irmãos de que muita gente os confunda na sociedade, quando todos lhes parecem tão diferentes. É que o trato diário e a intimidade lhes permitiu apanhar as diferenciais, e não as semelhanças. Também na crítica de atribuição, só esse trato e intimidade confere ao pesquisador a faculdade de distinguir, sem a qual estará sujeito a erros desastrados.

Quantas e quantas vezes as semelhanças, que se apontam entre dois autores, nada mais significam de que a ausência, no crítico, de conhecimento íntimo ou familiaridade com tais autores.

3. Parecerá, certamente, a muitos - pois a mim mesmo pareceu que há transcrições demais neste trabalho. É esta, aliás, uma contingência de toda a crítica de atribuição, na qual a documentação tem sempre um grande papel.

Pesei, devidamente, os prós e os contras da matéria; e se, vencendo hesitação, me decidi a alargar as transcrições, fui levado de boas razões, que sucintamente expendo.

Pareceu-me de grande importância habilitar o leitor a adquirir imediatamente o conhecimento íntimo ou familiaridade, de que falei há pouco, imprescindível ao seu julgamento.

Grande número de obras, das quais transcrevo, são tão raras, que mesmo nas maiores bibliotecas, não se encontram todas.

Supondo, mesmo, que o leitor saísse de seus cômodos para ir a uma biblioteca pública examinar textos, que eu apontasse apenas, a quantos leitores, pelo Brasil em fora, poderia aproveitar esse recurso?

Tive, pois, em vista esta nossa pobreza bibliográfica, quando prodigalizei a prova textual.

Ao demais, grande parte desta é colhida em obras de Sousa de Macedo, que não se acham no comércio; e sendo os seus escritos, com raras exceções, substanciais e formosos, terá lucrado o leitor, com a prodigalidade de textos, uma preciosa seleta de um mestre do pensamento e da linguagem. E àqueles que, ainda assim, se enfadem com a muita transcrição, lembrarei, à guisa de solatio miseris, que ela representa parte íntima do que tive de compulsar e ler, para escrever o livro; e que deixei de lado um vastíssimo campo de dormideiras, que, durante mais de vinte anos, fui obrigado a percorrer e vistoriar.

4. Se as investigações de autoria, como deixei reconhecido, não são trabalhos geniais e de fama, também não são exercícios fúteis, e destituídos de valor, como cuidará, talvez, algum espírito prático da nossa era de eficiência. Elas não são o jogo boticário de gamão dos meus dias de infância, ou a decifração de palavras cruzadas dos dias de agora. Interessam à história das literaturas e dão à produção literária de autoria desconhecida ou incerta o seu valor definitivo e real.

A arte de furtar, por exemplo, não é apenas uma joia do português castiço ou um documento filológico. É, sobretudo, um depoimento dos costumes portugueses no século XVII. Indispensável é, portanto, a qualificação da testemunha, para se saber o valor e alcance do testemunho. Enquanto não se conheça o autor, não se sabe em que conta se há de ter, para efeitos históricos, as informações e comentários da obra. Se esta é do Padre Antônio Vieira, terá um peso o depoimento; se do linguarudo e pilherudo Tomé Pinheiro da Veiga, terá outro. E às vezes o mesmo depoimento que numas matérias é valioso, se torna suspeito e sem valor em outras, ou deve ser recebido com algum desconto.

5. Concedamos, entretanto, que a crítica de atribuição seja um puro diletantismo, um simples afiador da inteligência, sem resultados práticos apreciáveis.

Ficar-lhe-á, em todo o caso, a sedução e o merecimento de toda a obra de justiça. Hão de sempre apreciá-la aqueles em cujo coração resida o impulso quixotesco de endireitar tortos, e que se não conformem com a injustiça de ser tirado ao verdadeiro dono a glória de uma obra como A arte de furtar.

Certo de que meus leitores pertencem todos a esta legião cavalheiresca, faço votos lhes proporcione este livro as mesmas satisfações espirituais que senti ao escrevê-lo.

                                     (A arte de furtar e o seu autor, vol. 1, 1946.)