Ao declarar publicamente que preferia a vitória da democrata Kamala Harris na eleição presidencial de hoje nos Estados Unidos, o presidente Lula deixou novamente que sua posição pessoal superasse os interesses nacionais. “Países não têm amigos, apenas interesses”, diz o adágio diplomático citado com frequência. Assim como não existem amigos na agenda internacional. Lula certamente pensou na relação entre Trump e a família Bolsonaro.
Mas a propalada amizade entre Trump e Bolsonaro, base para a defesa de uma política externa atrelada aos Estados Unidos, foi desmistificada pelos próprios americanos, ao apoiar que Argentina e Romênia iniciassem antes do Brasil o processo de entrada na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2019, fazendo com que o nosso atrasasse. Só foi formalizado em 2022, já no governo de Joe Biden.
Muito se falou sobre a proximidade entre as vitórias de Barack Obama nos Estados Unidos, em 2008, e de Lula em 2002. O próprio presidente brasileiro via semelhanças na trajetória de vida dos dois. Eleger um operário no Brasil teria quase o mesmo significado para nós que eleger o primeiro presidente negro nos Estados Unidos. Além de ter chamado Lula de “o cara”, nada mais, no entanto, aconteceu na relação pessoal entre os dois.
O governo Lula na ocasião preferia um futuro presidente republicano, porque seria “menos protecionista” e menos “próximo dos tucanos”. Se a relação dos tucanos com o Partido Democrata foi fortalecida pela amizade entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-presidente Bill Clinton, uma relação, se não de amizade, também especial, nasceu entre Lula e George W. Bush, que teve convivência mais amistosa com ele que com FH (este declarou que sentia “asco físico” por Bush). Provavelmente Bush pressentia em FH uma rejeição intelectual que não aconteceu com Lula, cujo temperamento cordial é mais parecido com o dele.
Houve época em que governos brasileiros avaliavam que os republicanos eram melhores para o país, pois seriam menos protecionistas que os democratas. Desde a vitória de Trump em 2016, no entanto, essa característica se modificou. Hoje os republicanos são mais fechados ao comércio internacional, combatendo o que chamam de “globalismo”, da mesma maneira que a política externa de Bolsonaro. Mesmo perdendo a reeleição, Trump impregnou o Partido Republicano com suas ideias reacionárias.
Se Kamala Harris vencer a eleição americana por margem apertada, como parece, é quase certo que Trump não aceitará o resultado mais uma vez, e teremos uma crise institucional na maior democracia do mundo. O ideal seria uma derrota de Trump por margem que não desse motivos para contestação, mas as pesquisas sugerem que essa hipótese é improvável.
Esta é a eleição mais importante dos últimos tempos para o mundo, não só para os Estados Unidos. Se Trump vencer, o mundo entrará numa espiral de violência muito grande, especialmente neste momento em que duas guerras que têm potencial de se transformar em conflitos globais dependem da posição dos Estados Unidos. Na guerra na Ucrânia, Trump e Lula têm posições semelhantes, a favor da paz com a aceitação da ocupação territorial da Rússia de partes da Ucrânia.
O melhor para o mundo seria a vitória de Kamala diante de um adversário que, além de forte eleitoralmente, tem o histórico de não aceitar derrotas, de alegar fraude nas eleições, como da última vez, um perigo para a democracia americana. A eventual vitória de Trump, que não será surpresa, também é ameaça à democracia, porque ele não é um democrata, não aceita que a minoria seja representada e tenha voz. Viveremos nesse caso uma experiência que, tudo indica, levará a péssimos resultados.