O poeta Antonio Cicero foi à Academia Brasileira de Letras, da qual era membro, no dia 10 último. Naquela quinta-feira, subiu ao segundo andar do Petit Trianon, participou do chá informal que antecede a reunião e, quando esta se iniciou, sentou-se em seu lugar de sempre, entre mim e o historiador Arno Wehling. Como fazia havia algum tempo, assistiu em silêncio aos trabalhos. Ao contemplar as paredes centenárias, os funcionários da Academia e os confrades, por quem era muito estimado, sabia que aquela seria a última vez. Nós é que não imaginávamos que nunca mais o veríamos.
No dia 18, com seu companheiro há 40 anos, o figurinista Marcelo Pies, Cicero saiu de seu prédio na rua David Campista, no Humaitá. Tomaram um táxi para o Galeão, desembarcaram em Paris de manhã e Cicero foi a seus museus e livrarias favoritos na cidade que era também sua. Dois dias depois, partiram para Zurique, na Suíça, onde tinha um encontro com os médicos que o acompanhariam quando se autoadministrasse um remédio indutor do sono que, em meia hora, faria seu coração parar. Era a "morte assistida", o procedimento a que se decidira havia um ano, quando os exames determinaram que sofria da doença de Alzheimer.
Cicero não queria que o Alzheimer cumprisse seu terrível ciclo de perda da memória e, de repente, da razão. Chegara àquele estado fronteiriço, em que ainda se consegue perceber a proximidade da demência —e, por percebê-la a tempo, optou por derrotá-la, antecipando-se a ela. Em um mês ou dois, talvez essa percepção já não lhe fosse possível.
Em casa, antes de partir, qual terá sido o último livro que leu? E o último poema? Ao contemplar seus objetos, suas estantes, seu gato Homero, sabia que era uma despedida. O que terá sentido ao fechar a porta do apartamento, descer à rua e entrar naquele táxi que, no fundo, era um táxi para Zurique? E, depois, como ele acreditava, para o lugar nenhum.
Não sei. Só sei que seu gesto calou fundo entre nós, seus colegas da Academia, e nos fez admirá-lo ainda mais, agora por sua coerência. Afinal, um dia ele escrevera: "Eis o que torna esta vida sagrada:/ Ela é tudo, e o resto, nada."