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Monstros de estimação

 

Outro dia, passando para mim mesmo o DVD de "O Lobisomem", o clássico de 1941 com Lon Chaney Jr., mais uma vez fiquei revoltado: o Lobisomem, depois de estraçalhar dois ou três em defesa própria, é morto a tiros pelo próprio pai na penúltima cena —e, na última, quebrando-se a maldição de que fora vítima, volta a ser o inocente Lawrence Talbot, um sujeito que, de tão doce, é uma ameaça para diabéticos.

Já se fizeram muitos filmes de lobisomem. Em todos, ele morre no fim, e o roteirista nunca lhe concede a dádiva de uma lágrima em sua última agonia. Ninguém se comove com o fato de que o infeliz, por ter sido mordido por um lobo, transformou-se num deles e, daí, ficou proibido de ser recebido em casas de família. Mas que culpa teve nisso?

Outro monstro injustiçado é a criatura construída pelo Dr. Victor Frankenstein, a quem o mundo atribuiu o nome do médico. Frankenstein, o monstro, não pediu para nascer, e muito menos à base de pedaços já meio podres de cadáveres surrupiados de túmulos. Não queria ser um monstro. Os homens é que o tornaram assim, negando-lhe o direito de conviver em sociedade. Desesperado, pediu ao cientista que lhe construísse uma fêmea, tão horripilante quanto ele, com a qual se mandaria para o polo Norte. Mas o médico, com a fêmea já quase pronta, destruiu-a, e Frankenstein, vendo tudo pela janela, sentiu-se condenado a matar. Será justo condená-lo?

Para não falar na Múmia, originalmente um príncipe egípcio assassinado pelo pai da garota que ele amava e embalsamado para a eternidade. Pois, 4.000 anos depois, lá está ele quieto no seu sarcófago, e este é arrombado por arqueólogos ingleses enxeridos. Não imaginaram que o mau hálito de uma múmia milenar pode ser mortal?

Correndo o risco de passar por piegas, tenho pensado em estender essa compaixão ao dragão de são Jorge. Confesso que, com todo o respeito pelo santo guerreiro, incomoda-me ver o dragão, já caído e subjugado, ser trespassado com uma lança pelo herói armado, de capacete e a cavalo. Qual foi sua culpa? Ou morreu apenas por ser dragão? Se assim for, é todo o Direito que está em jogo.

Folha de São Paulo, 27/10/2024