Em 2022, o Brasil celebrou o centenário do modernismo, tendo como marco a Semana de Arte Moderna de São Paulo. Mas um evento menos lembrado, porém tão importante quanto, aconteceu dois anos depois no Rio. Na noite de 19 de junho de 1924, o escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras Graça Aranha (1868-1931) exportou para a então capital federal ideias modernistas ainda pouco difundidas na cidade.
Vestindo um elegante terno cáqui, o autor de “Canãa” eletrificou o Salão Nobre da Academia com a sua conferência “O espírito moderno”, em que confrontou as vanguardas da “mocidade” com os velhos paradigmas estéticos defendidos pela maioria dos imortais Casa de Machado de Assis (da qual ele próprio era membro fundador).
Graça defendeu uma arte brasileira original, que superasse sua submissão aos modelos estrangeiros. O discurso começou a desandar quando, para espanto dos presentes, ele apontou a ABL como um dos obstáculos a essa nova onda. “Se a Academia se desvia desse movimento regenerador, se a Academia não se renova, morra a Academia!”, disse, acrescentando que a fundação da casa havia sido "um erro e um equívoco".
Foi o suficiente para provocar um bate-boca histórico na sede da ABL, que opôs os simpatizantes do modernismo e os imortais mais conservadores. Uma manchete no dia seguinte definiu a confusão como “Pugilato no Olimpo”. Segundo o Rio-Jornal, “os velhos ídolos literários foram apupados pelo espírito moderno”. Não se falava de outra coisa na imprensa, nos salões, nos cafés.
— Em âmbito nacional, foi a primeira vez que muita gente ouviu falar em modernismo — contextualiza o historiador Rafael Cardoso, autor de “Modernidade em preto e branco”. — É preciso lembrar que a Semana de Arte Moderna repercutiu pouco fora de São Paulo. O mito da Semana como marco fundador do modernismo só foi constituído após 1945. Para a opinião pública dos anos 1920, o rompimento de Graça Aranha com a ABL foi o grande divisor de águas.
Ao lado dos jovens
Mais velho do que os líderes do modernismo, Graça Aranha exerceu, em um primeiro momento, o papel de mediador entre as correntes do século XIX e a revolução modernista. Seu romance-tese “Canãa” (1902) misturou realismo e simbolismo, ficção e teoria científica, e foi enaltecido pelos modernos como um ponto fora da curva na nossa tradição literária.
As más línguas sugeriam que o veterano buscava recuperar a atenção perdida durante os anos em que trabalhou como diplomata na Europa. O filósofo Eduardo Jardim vê de outra forma. Autor de livros como “A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica”, ele lembra que Graça já havia antecipado tendências do modernismo em seu livro “A estética da vida” (1921).
— Ele anuncia a tese principal, a de que a modernidade não é algo abstrato, mas composto de partes diferentes — diz Jardim. — Ao mesmo tempo, diz que não faz sentido participar do concerto do universal sem os seus próprios elementos. É essa ideia que aparece no segundo tempo modernista e que já estava explicitada em “A estética da vida”.
Cenas de um pugilato
As cenas daquela noite marcaram a cena cultural carioca, colocando a cidade outra vez no centro dos acontecimentos. Os membros da ABL não brigaram apenas entre si, mas também com os jovens escritores e outros curiosos que lotaram a sessão.
Colegas de fardão de Graça Aranha o acusaram de "cuspir no prato que comeu". E reles mortais com ambições acadêmicas também. Trepando em uma cadeira, o poeta Claudio Souza proclamou: já que o conferencista desprezava tanto a Academia, tinha a obrigação moral de renunciar à sua vaga. Um jovem na plateia o provocou: "O que o senhor quer é abiscoitar a cadeira dele" (Souza, por ironia, seria eleito para a ABL logo depois).
Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/10/20/ha-100-anos-graca-aranha-rachava-a-abl-com-discurso-em-defesa-do-espirito-moderno-entenda.ghtml
21/10/2024