Ruy Castro, maior biógrafo em atividade no Brasil, publicou quase cinquenta livros desde os anos 1990. Agora tem no catálogo também uma plaquete. O livrinho, publicado pelo selo Janela em parceria com a editora Mapa Lab, se chama O fogo, a roda e a palavra. Contém dois discursos proferidos por ele: o de posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), em março de 2023, e o de agradecimento pelo Prêmio Machado de Assis recebido em 2022.
Castro e sua esposa, a escritora Heloísa Seixas, participaram nesta sexta-feira (11) de uma mesa na Casa de Histórias, na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). A casa é organizada pela piauí em parceria com a Netflix, a Janela Livraria e a editora Mapa Lab. Em conversa com o editor-executivo da piauí Alcino Leite Neto, o casal falou de diferentes assuntos, como a vida na ABL, a moda da autoficção, a situação do Rio de Janeiro e as plaquetes.
Autora de mais de vinte livros, Seixas lançou a plaquete O lugar escuro: uma história de senilidade e loucura. Trata-se de uma peça teatral adaptada de seu livro homônimo, na qual ela reconta a convivência com sua mãe, diagnosticada com a doença de Alzheimer. “Naquela época não existia Google, e eu nunca tinha ouvido falar de Alzheimer. Eu achava que minha mãe estava virando uma velha chata. Ela virou o contrário dela mesma. E isso foi me deixando completamente fora de mim”, contou Seixas. “Quando lancei o livro, em 2007, muitas pessoas vieram me abraçar, emocionadas. A história é realmente emocionante, porque é triste, difícil. Mas o que elas me falavam, principalmente, é que tinham ficado aliviadas de me ouvir falar da minha raiva. No livro, eu não sou uma filha boazinha.”
A adaptação para o teatro se deu graças a uma provocação de Paulo Autran (1922-2007), que estimulou Seixas a escrever peças. Questionada se sua obra se encaixa na categoria de autoficção, a escritora explicou que O lugar escuro é puramente memorialístico – “mas de vez em quando a mãozinha escorrega.” Seixas disse não gostar do termo autoficção, que tem feito sucesso nas mãos de autores como Annie Ernaux e Édouard Louis. “Eu sempre tive uma tentação de trabalhar em cima desse fio da navalha, entre ficção e não ficção, fantasia e realidade, sem muita preocupação em rotular. Quando me perguntam isso, eu sempre respondo: fantasia também é autobiografia. Mesmo que o autor esteja escrevendo coisas que ele acha que saíram de um lugar desconhecido, tem ele no texto.”
Castro fez troça quando perguntado sobre a vida dos imortais da ABL. “Essa coisa de imortal só existe fora da academia. Lá ninguém se chama de imortal, mesmo porque de três em três meses morre um.” Disse que nunca teve interesse em ingressar na academia, e que o processo foi natural. Depois de receber o Prêmio Machado de Assis, a mais importante láurea da ABL, foi convidado a se tornar um integrante e aprovado em votação.
A primeira vez que Castro pisou na ABL foi em 1967. Trabalhava para a revista Manchete e foi até lá cobrir a posse de Guimarães Rosa. A reportagem ficou pronta, mas acabou sendo revirada do avesso: três dias depois da posse, o novo imortal morreu. Castro relembrou o episódio 55 anos depois, no discurso que proferiu ao receber o prêmio literário da ABL, em 2022. “Devia ter umas trezentas, quatrocentas pessoas na cerimônia do prêmio. E lá tinha gente muito mais velha que eu. Ainda assim, olhei em volta e me dei conta: dessa multidão, eu sou o único que assistiu à posse do Guimarães Rosa. Mesmo os acadêmicos que estavam na minha premiação não eram acadêmicos quando ele tomou posse, em 1967.”
Notório defensor das causas cariocas, Castro, que nasceu no interior mineiro, teceu comentários sobre o passado e o futuro do Rio de Janeiro. “Não tem essa coisa de que fui adotado pelo Rio. Eu sou um carioca que nasceu fora de casa”, disse o escritor. E reclamou que a cobertura jornalística do Rio de Janeiro é desproporcionalmente negativa – segundo ele, graças à cobertura enviesada da imprensa local. “Se uma galinha pula o muro do vizinho no Rio, isso sai na Globo. Alguém dá tiro, sai na Globo. Se no Nordeste turistas são obrigados a sair do hotel com escolta para não serem assaltados, isso não sai na Globo.”
Plaquetes são pequenos livros que comportam quase todo tipo de texto: crônicas, contos, ensaios, poemas. A estrutura mais breve é, por um lado, libertadora. O autor se despe da obrigação de construir uma história densa e pode experimentar cenas avulsas, vozes passageiras, que saem de cena tão rapidamente quanto entraram. Por outro lado, é um formato restritivo, sobretudo em prosa: nem toda história se desenvolve bem em tão poucas páginas. É difícil construir personagens críveis e dar senso de conclusão a um texto que mal começou.
Quatro autores de plaquetes discutiram o assunto na quinta-feira (10), em uma mesa da Casa de Histórias. Eram eles Clarisse Escorel, Eugênia Ribas-Vieira, Estevão Ribeiro e Ieda Magri. A autora Fernanda Moreira, que também participaria da conversa, não pôde comparecer por motivos de saúde.
Os quatro escreveram histórias muito diferentes entre si, todas publicadas pela Janela em parceria com a Mapa Lab. A plaquete de Escorel, Diamantes, entrelaça três contos centrados, a princípio, em três objetos concretos: jacas, diamantes e caliandras. A plaquete de Ribas-Vieira, Museu dos Sonhos, é um relato onírico, baseado em desejos inconscientes da autora. Largo Tereza amanhã!, de Ribeiro, é escrito da perspectiva de um homem obcecado por uma mulher. Um laço para três homens, de Ieda Magri, desfia a memória em três atos.
Nascido no Espírito Santo, Ribeiro é escritor, quadrinista e roteirista (trabalha atualmente na série Cidade de Deus, adaptada do filme homônimo). Ele contou que, convidado a escrever uma plaquete, quis se desafiar. “Será que consigo contar a história de um cara falando da mulher por onze páginas?” A dificuldade, ele explicou, era torná-lo multidimensional, e não a caricatura de um stalker. “É um personagem questionável, mas ao mesmo tempo o que ele sente pela Tereza é muito humano.” Ribeiro avalia que conseguiu o que queria: uma história de fôlego curto, mas bem delineada. “É um monólogo sobre Tereza e a relação do Ricardo com ela. Acho legal isso, um narrador que não é onisciente mas conhece muito da pessoa. Aquilo, para ele, é Tereza. O cheiro dela, como ela se veste, do que ela reclama.”
Magri relatou o mesmo dilema – agravado, no seu caso, por um formato mais experimental. “Minha plaquete continua uma investigação que tenho feito nos meus livros. Tento usar vozes diferentes que contam histórias parecidas, ou às vezes a mesma história. Uma voz mais irritada, uma mais melancólica, uma mais sonhadora…” Doutora em literatura, Magri publicou os romances Uma exposição (Relicário, 2021) e Ninguém (7Letras, 2016). “A dificuldade da plaquete era criar, num texto curto, personagens que não virassem tipos.”
Tanto Eugênia Ribas-Vieira quanto Clarisse Escorel escreveram histórias pessoais. A de Escorel é uma montagem de três contos escritos em momentos distintos, sobre assuntos diversos, que se unem pela relação que têm com os sentimentos da autora. Não foram pensados como uma plaquete, mas se adaptaram bem ao formato ligeiro. Entre os objetos analisados por ela está a jaca. “Desde a infância a jaca me intrigou. O cheiro me incomodava, o aspecto me incomodava. Mas, recentemente, meus vizinhos quiseram derrubar uma jaqueira e fui contra a ideia.” O texto se constrói em cima dessa contradição. Escorel é uma neófita na literatura: tem mestrado em direito internacional pela USP e publicou no ano passado seu primeiro livro, pela editora Ouro sobre Azul: Depois da chuva.
Ribas-Vieira, jornalista e agente literária, contou que a plaquete Museu dos Sonhos foi “uma concretização do meu trabalho como escritora”. Em vez de construir uma narrativa com começo, meio e fim, ela disse que se permitiu “simplesmente observar os sonhos e tentar contá-los”. Seu primeiro livro, Onde choram as crianças (Faria e Silva Editora, 2022), também é permeado pela linguagem onírica. “Nele, trabalho principalmente meus grandes pesadelos. Na plaquete, eu trabalhei os desejos, da infância à vida adulta. É um convite a todo mundo para que visitem seus próprios sonhos, e um convite à minha intimidade.”
“Eu me preocupo muito com o ritmo do texto, porque acho que o streaming mudou um pouco a nossa forma de consumir literatura. Esse negócio de maratonar, de as pessoas abandonarem as séries… Sempre foi direito do leitor abandonar o livro, mas agora esse direito é levado às últimas consequências. Então como faço para levar o leitor até o final?”, ponderou o escritor Rodrigo Santos. Autor da plaquete Rinha, ele participou nesta sexta-feira (11) de uma mesa na Casa de Histórias com outros três autores: Gaía Passarelli, Olívia Mendonça e Luiz Antonio Simas. A conversa foi mediada pela jornalista Raquel Cozer.
Os quatro escritores relataram não ter tido problemas com o formato curto. “Sou daquela geração que leu muito a coleção Para Gostar de Ler na escola. Acho que comecei a escrever crônica inspirada por isso – uma literatura que se pretende fácil, acessível, gostosa”, disse Passarelli, autora da plaquete Um homem bom. “Para mim foi tão simples esse processo que tive que selecionar três contos para preencher a plaquete. Meus textos são curtos. Meu estilo é corte seco. Quero dar uma porrada, e rápido”, explicou Mendonça, autora de É raro, mas acontece. “Eu gosto do texto curto porque me livro rapidamente daquela ideia”, disse Santos. E Simas, que não se considera escritor, mas professor, disse: “O texto curto não me incomodou pelo seguinte: aula é uma coisa curta.”
Os autores, por fim, compartilharam suas experiências com a ficção. Mendonça explicou que não tem aptidão para histórias fabulosas e inventadas; prefere contos e crônicas sobre questões do dia a dia. Santos disse ser o contrário: gosta de enredos mirabolantes, de imaginar o extraordinário e as possibilidades da vida comum. Simas, que desde criança frequenta terreiros de umbanda no Rio de Janeiro, se explicou de forma sucinta: “Eu não tenho essa relação com o extraordinário porque cresci tomando esporro de morto.”
A última mesa sobre plaquetes foi realizada no sábado (12). Reuniu os escritores Eliana Alves Cruz, Felipe Charbel, Priscila Sztejnman e Stephanie Borges, com mediação da jornalista Cláudia Lamego. Os quatro leram trechos de seus livretos. Charbel fez de sua plaquete um exercício de diário autofictício; Sztejnman escreveu, em prosa, a história de uma mulher da perspectiva da sexualidade; Alves Cruz fez o relato de uma testemunha ocular da morte de Tiradentes; e Borges produziu poemas em homenagens a escritoras.
“Quis fazer algo original dentro desse formato. Não quis pegar coisas que eu já tinha. Não queria diálogo, mas uma literatura subjetiva”, explicou Sztejnman, autora da plaquete Nasceu menina. Charbel contou que seu texto, Exercício para melhorar o meu diário, foi de fato concebido como um exercício de escrita. “Na pandemia, resolvi ler meu diário e percebi como era chato, com minhas lamúrias, queixas, manias. Mas li um trecho de uma viagem que fiz lá atrás e achei diferente, melhor. Pensei em testar, a partir disso, algo que fosse mais legal, mais interessante. E o narrador sou eu numa versão mais chata, ranzinza.”
Borges conta que o título de sua plaquete, Um nome não é uma chave, surgiu num sonho. Foi o ponto de partida para os poemas. “Gosto muito do formato, porque ele comporta esses projetos pequenos. Permite registrar um momento, e pra mim foi especial.” Alves Cruz, por sua vez, contou que desde criança tinha interesse pela figura de Tiradentes. “Pensei: ‘e se um dos escravizados de Tiradentes, que presenciou reuniões, tramas, conspirações, contasse essa história? E se a gente fabulasse?” Assim nasceu Carta às cabeças brasileiras do futuro, conto publicado pela primeira vez na piauí_182, em 2021.
Matéria na íntegra: https://piaui.folha.uol.com.br/como-nasce-uma-plaquete-flip-2024/
15/10/2024