A primeira obra impressa de Lima Barreto foi “Recordações do escrivão Isaías Caminha”. O livro saiu por uma editora portuguesa, no ano de 1909, graças aos esforços do próprio autor, que pagou pela publicação.
Isaías Caminha era o alter ego preferido de seu autor. Pobre, morador do subúrbio, ele entendia de jornalismo. Assim, se na primeira parte da obra conhecemos o ritual de passagem do garoto à idade adulta, quando Isaías deixa a periferia e chega na capital para conhecer o racismo, na continuação vemos o rapaz empregar-se em um fictício O Globo, periódico inspirado no poderoso Correio da Manhã, para o qual Lima trabalhara em 1905. (Este GLOBO surgiu em 1925, três anos após a morte de Lima Barreto.)
O romance detona com o jornalismo e seus profissionais, mal protegidos por frágeis pseudônimos, ao mesmo tempo que somos apresentados a um deles: o jovem Raul Gusmão, na verdade, João do Rio. Na primeira menção ao cronista, Lima/Isaías já estranha “a voz fanhosa, sem acento de sexo”, numa insinuação maledicente acerca da homossexualidade do personagem inspirado em seu notório rival.
A orientação sexual do escritor chamava atenção no tacanho ambiente carioca. Tradutor de Oscar Wilde, João do Rio costumava ser ironizado como um “dândi de salão”. Talvez por isso Lima tenha se animado a tirar a fofoca do bastidor para levá-la ao primeiro plano. “Pithecanthropus”, “raça de suíno” e “falso literato”, são alguns dos “atributos” que Lima repete no livro, revelando os próprios preconceitos.
É fato que João do Rio usara de termos semelhantes para definir os terreiros de candomblé, que descreveu como “antros de gorilas manhosos e de uma súcia de pretas cínicas e histéricas”. Mas é certo, também, que Lima ia à desforra, com Gusmão sendo caracterizado como falso e insolente, consumidor de vinhos caros, de moral duvidosa e acostumado a soltar seu desdém e “uma preguiçosa fumaça do charuto”.
João do Rio e Lima não poderiam ser mais opostos. Lima era um escritor/personagem, conhecido como um andarilho boêmio, desbocado e malvestido. Ocorre que João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto era, àquelas alturas, uma personalidade da república das letras. Suas crônicas, convertidas em 1904 no livro “As religiões do Rio”, viraram um tremendo sucesso: no espaço de seis meses foram vendidos oito mil exemplares.
De toda forma, Lima, que assumiu papel tão proeminente na denúncia ao racismo, não pareceu se comover com outras minorias. Já João do Rio — um filho de pai branco e mãe negra — deu o troco. Quando o original de Lima chegou ao editor português, o cronista, que se encontrava em Lisboa, não apoiou a publicação e ainda afirmou “desconhecer” seu autor. E, enquanto João do Rio entrou para a Academia Brasileira de Letras em 1910, com apenas 29 anos, Lima Barreto tentou três vezes, sem sucesso. Dizem por aí que o acadêmico boicotou sem dó, e sempre que pode, a candidatura do colega.
Lilia Moritz Schwarcz é historiadora, membro da Academia Brasileira de Letras e autora, entre outras obras, de “Lima Barreto: triste visionário” (2017) e “Imagens da branquitude” (2024)
Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/10/11/artigo-joao-do-rio-e-lima-barreto-contemporaneos-e-opostos.ghtml
14/10/2024