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Política externa em xeque

 

O pronunciamento do ministro da Defesa, José Mucio, sobre “questões ideológicas” que estariam atrapalhando os negócios do Brasil na área militar revela uma discordância muito mais profunda com áreas políticas do governo do que uma simples desavença comercial. A insólita declaração do ministro desvenda um descontentamento na área militar com os rumos da nossa política externa, que também é alvo de críticas no Congresso.

Mucio contou que Israel venceu recentemente uma licitação para compra de blindados, mas, “por questão da guerra, do Hamas, grupos políticos, nós estamos com essa licitação pronta, mas, por questões ideológicas nós não pudemos aprovar". Outro exemplo de “embaraço diplomático” dado a empresários pelo ministro da Defesa: “nós temos uma munição aqui no Exército que não usamos. A Alemanha quis comprar. Está lá, custa caro para manter essa munição. Fizemos um grande negócio. 'Não vai. Porque, se não, o alemão vai mandar para a Ucrânia, e a Ucrânia vai usar contra a Rússia”.

Os dois exemplos abrangem as guerras de Israel e Ucrânia, questões delicadas da nossa política externa muito criticadas pelo viés ideológico de esquerda que fica claro na fala do ministro. Ele reclamou que, nos últimos anos, tivemos um retrocesso nos investimentos do governo na ordem de 47%. E denunciou: “Ainda existem muitos, por componentes ideológicos, por componentes políticos, por variações programáticas, que acham que a Defesa não funciona”.

As decisões políticas dos governos civis sobre as questões militares são sempre polêmicas. O estadista francês George Clemenceau, ao final da Primeira Guerra Mundial decretou: “a guerra é muito importante para ser deixada por conta dos generais”. Daí porque o ministério da Defesa tem, historicamente, o comando de civis. O especialista em estratégia militar Domicio Proença Junior comenta: “cada governo pondera os diferentes aspectos de cada questão à luz de seus interesses, pondera efeitos relacionados e chega a uma decisão. Não poderia ser diferente.”

O fato é que vetar negócios militares para não beneficiar um governo adversário, ou para proteger os interesses geopolíticos de um país, é parte do cotidiano dos governos pelo mundo. A China sancionou várias empresas americanas e seus diretores por venderem armas a Taiwan, em resposta às sanções impostas pelos Estados Unidos a entidades chinesas por causa da guerra na Ucrânia, que, segundo Pequim, "violou os direitos legítimos de instituições e indivíduos chineses".

Agora mesmo o governo brasileiro está às voltas com uma ação do governo dos Estados Unidos que pede à empresa sueca SAAB informações sobre os contratos para a aquisição de 36 caças Gripen, no valor de U$ 4,5 bilhões em 2014. A empresa americana Boeing era uma concorrente, com o seu F-18 Super Hornet, mas perdeu força na concorrência porque não aceitou compartilhar tecnologia com o Brasil. O presidente Lula e um seu filho foram acusados de terem interferido na transação para favorecer a SAAB, mas o processo foi sustado no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo então ministro Ricardo Lewandowski, hoje ministro da Justiça do governo Lula.

Essas disputas em torno de um mercado bilionário são comuns, e por isso não há que se estranhar a influência política do Itamaraty em casos como esses. O que está em discussão é outra coisa: o governo Lula ganhou nas urnas o direito de mudar completamente as linhas mestras da tradicional política externa brasileira, em aproximação com países que estão em disputa com o mundo ocidental, como a Rússia, ou se aliar com grupos terroristas como o Hamas e o Hezbolah contra Israel? Sobre a Rússia, parece não haver dúvidas de que o governo brasileiro não poderia ter aderido à invasão da Ucrânia. Quanto a Israel, é necessário criticar as ações desproporcionais do governo, mas não se pode esquecer do início do conflito, um inaceitável massacre horrendo do Hamas apoiado pelo Irã e pelo Hezbolah.

O Globo, 13/10/2024