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Fantasiados, acrobáticos e pirotécnicos

 

Ao ver a sucessão de cantores fantasiados, acrobáticos e pirotécnicos nos palcos do Rock in Rio —Ivete Sangalo entrou voando de tirolesa—, um amigo me perguntou o que aquilo tinha a ver com música. Respondi que essa deveria ser a última das suas preocupações. Não é música que está em jogo, é outra coisa. Além disso, em todas as épocas, mesmo os maiores cantores e instrumentistas usavam truques e acessórios em suas apresentações. Ou seja, no tempo da música já era assim.

Carmen Miranda, luso-carioca, se fantasiava de baiana. Moreira da Silva, pai, marido e profissional exemplar, de malandro chique. Luiz Gonzaga, de cangaceiro (por sugestão de seu parceiro e mentor Humberto Teixeira, que o convenceu a abandonar o smokingzinho surrado com que tocava sambas no Canal do Mangue). Luiz Barbosa, Dilermando Pinheiro e Joel de Almeida batiam samba no chapéu de palha; Ciro Monteiro, na caixa de fósforos; Orlan Divo, no molho de chaves.

Baden Powell conseguia tocar seu violão mesmo sem tirá-lo da capa de lona. Bola Sete, brasileiro famoso nos EUA e esquecido aqui, tocava violão nas costas. Os americanos sempre gostaram desses truques. Trummy Young, da banda de Louis Armstrong, tocava trombone com o pé. Jimmy Smith, órgão com o nariz. O baterista Lionel Hampton tocava e fazia malabarismo com as baquetas ao mesmo tempo. E outro baterista, o explosivo Gene Krupa, fez misérias com dois palitos na lixa da caixa de fósforos, no filme "Bola de Fogo" (1941), de Howard Hawks.

Mas nada supera Spike Jones, band-leader cômico, mundialmente amado no pós-guerra. Sua orquestra destruía canções românticas, como "Cocktails for Two", com assobios, sinos, buzinas, gargarejos, soluços e até arrotos. Spike regia a banda a tiros de revólver em vez de batuta. O surpreendente é que fazia cacofonia por música, com partituras —um espirro ou pum tinha de ser no exato dó ou fá sustenido e no momento certo.

E não só Spike. Todos os citados acima eram artistas completos e seriam igualmente grandes sem macetes ou fantasias —como, aliás, nunca se cansaram de provar. Artista é isso, finge muito.

Folha de São Paulo, 05/10/2024