Estudiosa das imagens, a historiadora Lilia Moritz Schwarcz se interessa por tudo aquilo que, de tão visível, se torna invisível. É o que ela chama de “presença da ausência”, uma expressão que não por acaso serve de subtítulo para seu novo livro, “Imagens da branquitude”. A partir de pinturas, fotografias, anúncios e outros documentos visuais, a imortal da Academia Brasileira de Letras mostra como a cultura e a identidade brancas se manifestaram simbolicamente e se tornaram norma. Segundo Lilia, o “pacto das imagens” teria naturalizado um projeto de nação em que negros não têm lugar. Para identificar o racismo que o marca (e um privilégio que a sociedade teria sido treinada a ignorar), seria necessária uma lente de aumento.
Há casos de apagamento literal, como a fotografia do início do século XX em que uma mulher e uma criança negra seguram o painel que serve de cenário para um casal branco. Cortados da imagem na época, os serviçais só apareceram cem anos depois, após uma nova revelação do negativo. Outros casos são mais sutis, e demandam um esforço de “contranarrativa contraintuitiva”, como define a autora.
Do século XVI aos dias atuais, Lilia passa pela “agressão da intimidade” sofrida pelas amas, pelos pés descalços dos negros, pelos espaços incógnitos esnobados pelos mapas, pelas propagandas de sabonete que projetam fantasias higienistas e até por campanhas de governos recentes. Em 2019, numa peça publicitária do ProUni, uma jovem negra segura o seu certificado de formatura com uma mão branca.
Nenhum desses detalhes é inocente, diz a historiadora, em entrevista ao GLOBO na Biblioteca Acadêmica Lúcio de Mendonça, da ABL.
Por que a assim chamada branquitude não costuma ser identificada como tal?
A branquitude é a norma que não se nomeia, como se fosse uma não raça. É um grupo social que não se vê como uma categoria, mas ao mesmo tempo compõe uma imensa categoria.
Como isso afeta os discursos de identidade?
A negritude se lançou como um lugar de afirmação e a branquitude como lugar de negação. Não é uma coincidência que este grupo acuse os demais de estarem inflacionando o discurso de identidade. O chamado identitarismo, por exemplo, é uma corruptela incorreta e perversa dos discursos de identidade. O termo já carrega algo pejorativo, como se fosse uma doença. Na minha opinião, os discursos de identidade são os discursos por justiça.
As imagens históricas do livro foram, na maioria, produzidas para a branquitude e pela branquitude. O que dizem sobre o privilégio desse grupo?
A branquitude não cessa de produzir versões espiraladas, a “boa escravidão”, as teorias de branqueamento e da democracia racial e, mais recentemente, a meritocracia. Ver essas imagens é uma experiência muito forte (para confrontar esses mitos). Porque é difícil vê-las e não pensar: “Como eu não vi isso antes?” O livro tem uma pedagogia, ele parte do conceito de letramento racial, de que todos precisamos. Eu chamo meu método de “ver pelos detalhes”, uma contranarrativa que destaca os elementos que o fotógrafo ou o pintor não quer que você veja. Porque esse é o lugar de naturalização. Mas, quando você coloca uma lente de aumento nesses detalhes, a imagem ganha uma outra conotação.
Como a população negra era retratada pela branquitude?
É a construção de um corpo subordinado, que vai sendo construído a partir do discurso colonial. No caso dos homens, eles eram retratados como trabalhadores incansáveis, sempre maltrapilhos e descalços. Já as mulheres aparecem sempre com gestos sensualizados.
Há uma foto impactante, de 1899, que mostra uma criança branca montada nas costas de uma babá...
A foto é ainda mais terrível porque sequer foi feita no contexto da escravidão. Um detalhe significativo na imagem é a pulseira que a babá usa, indicando o limite de identidade que ela podia garantir. Esse gênero de imagem de “amas e suas crias” circulou por todo o Atlântico Negro. Não como uma demonstração da perversidade da escravidão, mas de uma suposta bondade encampada naquele corpo negro que cuida da criança dos brancos. Só a legenda das fotos já mostra a perversão: em geral só as crianças aparecem com o nome completo. Nas raras vezes em que as amas são identificadas, é só pelo primeiro nome.
O sapato, ou a falta dele, é um detalhe que ganhou força na pesquisa.
Sempre chamo a atenção para que as imagens agem por convenção e associação. E comecei a notar esse lugar muito destacado dos sapatos nas fotografias e quadros. Sempre essa relação paralela com anonimato e processo de nomeação, que é a ideia dos “com sapatos” e dos “sem sapatos”. Não havia lei dizendo que escravizados não podiam usar sapatos; mas, na prática, não usavam. Passei a rever o material olhando para o chão, um lugar que o artista acha que você não vai olhar. Ao comparar imagens, você percebe a força da convenção, e como ela naturaliza os sapatos e as meias como marca de distinção.
Como pesquisadora branca, você sentiu necessidade de se colocar nesse livro mais do que o normal?
É algo que tenho feito, como na minha biografia de Lima Barreto (“Triste visionário”). Mas neste novo livro me apresento mais, falo do meu lugar. Explico que (sua análise da branquitude) não é uma categoria de acusação, não é pessoal. É um processo para mim.
Como as obras de artistas negros contemporâneos, também presentes no livro, mudaram a iconografia?
Primeiro, mudou o modelo de arte. Toda arte é política, mas essa arte política entrou numa voga que não tinha. Vamos pegar uma pessoa como Jaime Laureano, que revira nossos mapas, destacando aquilo que os mapas não querem que você veja. Ou ainda Thiago Santana, Dalton Paula... Surgiu também uma produção que sabe fazer retrato, que é uma arte eminentemente negra. Você tem uma arte figurativa negra que muda a estética das artes, a questão formal, assim como muda os personagens.
Você tomou posse na ABL em junho. Já começou a explorar o acervo de imagens da casa?
Mal entrei aqui e caiu na minha mão um documento de 1923, um ano após a morte de Lima Barreto, que mostra que a ABL pagou pensão para a irmã do autor, que tentou ingressar três vezes na casa e não conseguiu. Já sabemos o valor e que foi pago pelo menos um ano. Agora quero entender melhor qual foi a demanda e extensão. Também pretendo explorar os cartões-postais que Euclides da Cunha enviava. Analisar que imagens de trópicos ele selecionava, e que ideia de tropicalidade usava.
Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/09/04/em-novo-livro-lilia-schwarcz-mostra-como-a-cultura-branca-moldou-um-ideal-de-nacao-pelas-imagens.ghtml
04/09/2024