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O peso da leniência

 

O assessor internacional da Presidência, ex-chanceler Celso Amorim, tem razão de temer uma guerra civil na Venezuela, como disse ontem em entrevista ao Estúdio i da GloboNews. Mas a situação escalou nessa direção também por culpa do governo brasileiro, que passou anos respaldando um governo claramente autocrático, que desmontou todas as instituições do Estado venezuelano para impor sua vontade no simulacro de democracia que o presidente Lula sempre elogiou.

Se Lula não tivesse avalizado a relatividade da democracia que o chavismo implantou no país vizinho, as manobras de Maduro para chegar a uma eleição fraudulenta não teriam sido facilitadas. O protoditador Maduro é tão rude e violento que já se fala com uma certa nostalgia canhestra de Chávez, que iniciou esse processo, mas tinha um pouco mais de pudor do que seu sucessor. Uma leniência com os crimes de Maduro que está custando caro ao Brasil.

Enquanto países como Brasil, México e Colômbia tentam uma negociação para uma transição pacífica aparentemente impossível, o governo Maduro manda prender a oposição e aumenta o nível das ameaças. A esta altura da crise, o Brasil romper relações com a Venezuela só aumentaria sua intensidade, mas é preciso que Maduro saiba que ficará isolado diplomaticamente caso não facilite uma saída “honrosa” para si mesmo.

Não há nada mais desonroso do que roubar uma eleição e impor sua continuação no governo contra a maioria dos cidadãos. A situação bizarra é que, não havendo atas oficiais, não é possível também declarar oficialmente a vitória da oposição, embora esse seja o resultado que a maioria dos países, inclusive o Brasil, sabe que é o verdadeiro. Avalizar a vitória de Maduro é impensável para um país que se pretenda sério e líder da região, como o Brasil se apresenta no foro internacional.

A vitória da oposição, no entanto, precisa ser declarada oficial de alguma maneira, e a situação se agrava quando se sabe que o futuro presidente só assumirá no começo do próximo ano. Maduro continuaria legalmente no poder de qualquer maneira nos próximos meses, e nesse período terá tempo suficiente para se consolidar como ditador de fato, se não for acatado como o vencedor de direito da eleição. Diante de tudo isso, é forçoso verificar que o Brasil armou todo esse imbróglio diplomático ao colocar suas fichas num político grosseiro e autoritário, que fala com um passarinho que encarna a figura de Chávez e lhe dá conselhos — tão crível quanto as atas que pode estar falsificando nos bastidores do governo.

Por falar nisso, mesmo que agora Maduro apresente as atas que diz ter enviado para a Corte Suprema do país, elas teriam de passar por uma auditoria independente para verificação de sua autenticidade. A oposição está oferecendo ao governo brasileiro as atas que conseguiu fotografar, mas só o ato de aceitá-las já seria um rompimento com o governo de Maduro.

Seria uma indicação de que desconfia da credibilidade da Justiça venezuelana, sabidamente controlada pelo governo. A única saída possível é o próprio Maduro ser convencido de que o melhor seria terminar seus dias numa praia brasileira ou do Caribe, como sugeriu a revista inglesa The Economist. Mas seria para o governo brasileiro mais uma dor de cabeça, pois sabidamente sua atitude nesse relacionamento com o governo venezuelano não agrada à maioria da sociedade, conforme constatado por pesquisas de opinião.

Como parece inalcançável um acordo nesse sentido, pois para Maduro e seus militares cooptados é mais fácil escancarar a ditadura do que aceitar a saída do poder, o Brasil carregará nos ombros, em algum momento, esse peso antidemocrático na região que supostamente lidera. A sugestão de Celso Amorim de uma anistia recíproca, e o fim das sanções econômicas que os Estados Unidos e a União Europeia impuseram à Venezuela, seria igualar as partes em disputa.

O Globo, 08/08/2024