O presidente Lula, que se define como uma “metamorfose ambulante”, certa vez assegurou que a “evolução da espécie humana” é o centro político. Por isso, pessoas com mais de 60 anos tenderiam “ao equilíbrio” porque “idoso esquerdista tem problema”. Mas Lula já disse também que é de esquerda, mas que seu governo não é. Esse malabarismo retórico pode ser a explicação mais simples para a confusão em que o Brasil se meteu nessa questão da Venezuela. Uma cegueira deliberada.
A relação de Lula com os governos da Venezuela só é explicável pela tendência de esquerda que ele e seus principais assessores, como Celso Amorim, têm. Uma esquerda anacrônica, que se vê confrontada por outros esquerdistas que não tratam a democracia como uma etapa da luta política no caminho da implantação do socialismo, mas como uma questão fundamental e irreversível.
É inaceitável que Lula diga que a eleição na Venezuela foi pacífica quando pelo menos 16 pessoas morreram desde a promulgação do resultado, muitas outras foram presas durante o período de campanha eleitoral, fora as ruas ocupadas por milícias paraoficiais. Dizer que a oposição pode recorrer à Justiça, completamente dominada pelo chavismo, parece uma piada de mau gosto.
Como a que petistas fazem comparando a situação de María Corina, proibida pela Justiça chavista de concorrer à Presidência, com a condenação de Lula em segunda instância por corrupção, que o impediu de concorrer em 2018. Como se não soubessem que os governos de Chávez e Maduro foram alterando a composição do sistema judicial até controlá-lo completamente, enquanto no Brasil a condenação em três instâncias judiciais de Lula deu-se em ambiente livre e supervisionado pelo Superior Tribunal Federal (STF), o mesmo tribunal que acabou revertendo a condenação.
A visão dele de normalidade democrática não é nem questionável, é revoltante. Um líder que se proclama defensor da democracia, e por isso foi eleito contra um adversário que tentou dar um golpe, não pode achar que um golpe na Venezuela é normal. E se fosse um governo de direita, o que estariam dizendo o PT e o próprio Lula? Não é a primeira vez que Lula e petistas defendem ditadores, defendem o direito de a Constituição ser desrespeitada em outros países quando a esquerda está em xeque.
Já está beirando o surreal essa tentativa de normalizar uma ditadura sanguinária e corrupta como a da Venezuela, que se alinha a países que não prezam a democracia. Mas o Brasil não pode ficar ligado a ditadores e a visões autocráticas espalhadas pelo mundo, como China e Rússia, países com os quais o Brasil mantém relações normais, não de submissão.
A política externa brasileira nunca foi essa — como não era também a de Bolsonaro. Este transformou o país num pária internacional pelas posições amalucadas na política externa de teor antiglobalista e de direita radical. Lula foi para o extremo oposto e corre o risco de colocar o país em isolamento no mundo ocidental para apoiar irrestritamente a ditadura de Maduro. A política externa brasileira sempre foi de equilíbrio e atuação firme em defesa dos valores democráticos, e mesmo na ditadura militar o pragmatismo permitiu que o país se aproximasse da China ou reconhecesse os governos revolucionários de esquerda que nasceram do fim da dominação por Portugal das colônias da África.
Não podemos achar normal que o governo de um país democrático tenha atitude de apoio político irrestrito a uma ditadura, mesmo que vários aspectos do comércio internacional, e a proximidade territorial, indiquem que romper relações não é a solução. Mas também não pode ser solução fechar os olhos aos constantes ataques aos direitos humanos e às regras democráticas na Venezuela.
É inaceitável.