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Arte, não mais esporte

 

Circula por todos os veículos e redes sociais a foto do francês Jerome Brouillet, da Agência France-Presse, que mostra o surfista brasileiro Gabriel Medina voando nas ondas do Taiti e fazendo com o dedo o número 1, como se adivinhasse a nota 9,9 que os juízes lhe dariam, a maior até hoje na história do surfe olímpico. O que é mais impressionante? A destreza do fotógrafo ao calcular o micromomento do clique, o enquadramento mais que perfeito, a mão firme ao disparar, a exata simetria entre o homem e a prancha? Ou a proeza do surfista, nunca antes registrada —e, se nunca registrada, como comparar possíveis proezas semelhantes no passado?

Não pode haver comparação. Quando o surfe começou, as pranchas eram de bico quadrado, tinham dois metros de comprimento, pesavam 30 quilos e pareciam portas de igreja ou pedaços de um tapume de obra —o que de fato eram. A primeira vez em que alguém foi visto de pé sobre uma delas foi algo de sobrenatural. Hoje, as pranchas são outras, a preparação é outra, os surfistas são outros, até as ondas são outras.

E assim em todos os esportes. Seus praticantes parecem sobre-humanos em relação aos de ontem mesmo. O contraste mais à mão está no futebol: graças ao aparato médico dos clubes, a capacidade dos atletas e o equipamento mais leve e racional, os jogadores correm hoje quilômetros impensáveis —nos anos 1930, havia até profissionais tuberculosos.

Pense agora nos números do basquete, na força dos saques no tênis e no vôlei, na distância e na altura dos saltos, na resistência dos maratonistas, na velocidade das braçadas e nas coreografias da ginástica, dos saltos ornamentais, do skate. As Olimpíadas já não são apenas esporte, mas arte, em dezenas de categorias —e, finalmente, com câmeras e recursos para lhes fazer justiça.

O que me pergunto é qual erro custou a Gabriel Medina o 0,1 que lhe tirou o 10.

Folha de São Paulo, 30/07/2024