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ABL na mídia - O Globo - Ana Maria Machado: 'Orgulho-me do que ajudei a construir'

 

Em 1979, eu era jornalista e entrevistei uma animadora de festas para crianças, Maria Eugenia da Silveira, que pensava em abrir uma loja de brinquedos. Eu sonhava com uma livraria infantil, pois não existia nenhuma no Brasil. Desse encontro, acabou nascendo a Livraria Malasartes, que fundamos juntas e para a qual convidamos mais uma sócia, Renata Moraes, então psicóloga recém-formada e irmã da Claudia, repórter que trabalhava comigo. Escolhi o nome e o ponto, saí em busca de uma loja, consegui fiador. Trabalhei lá por 18 anos com sucessivas sócias (depois incorporando a própria Claudia e sua mãe Yacy), até ser forçada a optar entre me dedicar totalmente à escrita ou parar de escrever para continuar livreira em tempo integral. Agora leio que a Malasartes fecha as portas. Uma pena.

Quando abrimos, não havia uma só livraria infantil no país. Um ano depois, eram 14 só no Rio. Ao nos instalarmos no Shopping da Gávea, não existiam lojas no terceiro andar. Apenas um teatro, escritórios de contabilidade, consultórios médicos e salas comerciais. A promoção de nossa festa de abertura se concentrava em dois aspectos: mostrar ao público a beleza dos livros e ensinar a chegar lá. Mas logo os moradores das vizinhanças nos adotaram, sucumbindo ao slogan: “Venha descobrir — não é uma loja, é uma tentação”.

Em poucos meses, estouramos para a curtição de toda a cidade, graças a Chico Buarque. Ele escrevera uma história para as filhas, e disse à editora Donatella Berlendis (depois responsável pelas ilustrações da primeira edição) que só a publicaria se esse “Chapeuzinho Amarelo” passasse por meu aval, pois minha recente crítica a “Os Saltimbancos” lhe mostrara que eu o compreendia.

Amei o original do Chico e o convidei para fazer o lançamento na Malasartes. O resultado foram horas de autógrafos, quilômetros de fila e um engarrafamento de trânsito que se estendeu até o Jardim Botânico. E mais a incorporação da livraria ao mapa da cidade, trazendo consigo aquele terceiro andar para ser usado por outras lojas.

Nunca vou poder agradecer suficientemente a Chico por seu apoio. Com isso ajudou a dar às crianças cariocas 45 anos de oportunidades de contato com bons livros, bem escolhidos, em um local onde podiam ser folheados e lidos à vontade. Onde mesinhas e almofadas convidavam à leitura. Onde um quadro de cortiça servia a recados gerais. Onde uma máquina de escrever amarela oferecia seu teclado para escritas em papeis coloridos. Onde um “sebinho" garantia à criançada o acesso a livros usados baratíssimos — para alegria da garotada das escolas públicas das redondezas, em um movimento diário de venda e compra.

Fizemos lançamentos, feiras de livros, concursos de redação e desenhos sobre livros. O que festejou o centenário de Pinóquio, por exemplo, foi ganho por um menino da Rocinha. Celebrava um boneco que mentia de propósito para seu nariz crescer muito: vendia a madeira obtida com a poda de seu corpo, e assim usava a imaginação para beneficiar a favela. Pura metáfora do papel do artista.

Contei algumas dessas lembranças em meu livro “Rastros e riscos”. E trago este registro ao se anunciar o fim da livraria. Sinal de nosso tempo e das transformações do mercado livreiro.

Estas palavras são um réquiem por essa morte e um agradecimento pela resposta da cidade ao nosso sonho. Orgulho-me do que ajudei a construir, no espaço criado por Elvira Rossi, Anne Joe e Inês Martins, com logomarca de Joaquim Redig, estantes vermelhas, arco-íris girando no teto. E festiva algazarra pelos anos afora.

Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/noticia/2024/07/15/ana-maria-machado-orgulho-me-do-que-ajudei-a-construir-diz-fundadora-da-livraria-malasartes-que-fecha-as-portas-no-rio.ghtml?utm_source=Whatsapp&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilhar

16/07/2024