Senhora Rachel de Queiroz,
Seja-me permitido lembrar em hora excepcional como esta, precisamente a hora do vosso encontro com a nossa Academia, quanto se faz presente o ato sempre público que foi o vosso trabalho intelectual em quase meio século de vida literária. Sei muito bem que, a partir de 1930, quando o vosso romance de estreia O Quinze e o romance A Bagaceira, de José Américo de Almeida, abriram o novo processo da ficção brasileira, sei muito bem que o compromisso se estabeleceu entre uma escritura e o seu tempo. E melhor seria dizer entre a escritora, que sois vós, e os grandes problemas do homem, do mundo e da vida.
Não há, porém, compromisso voluntário em matéria literária. E, porque se impõe vocacionalmente, responde por uma espécie de destinação intelectual que supera todas as contingências humanas. E por isso mesmo é que, quando o escritor é autêntico, a biografia apenas conta como um dado menor. O que realmente conta é a obra literária como resultado do trabalho intelectual, sua colocação histórica, o reconhecimento crítico, sua contribuição como esclarecimento para a nossa condição existencial. E quase acrescento que, para o escritor, a vida real é a que viveu nos instantes da criação.
Esta, pois, é a vida que nos obriga a dizer de vós, que a vossa vida tem início com o romance O Quinze.
A significação desse romance, quando agora se visualiza por inteiro o círculo de vossa obra literária, não se restringe à dimensão mesma da narrativa. Mas, à sombra dessa dimensão, no conjunto dos componentes e no fundo da armação arquitetônica, integram-se as constantes que – em vossa novelística, vossa Dramaturgia e vossa crônica – caracterizam toda a vossa obra literária. Poder-se-á afirmar, em consequência, que vós a vós mesma já vos denunciáveis em O Quinze. É de fato o núcleo original que, na variação dos gêneros, abriga os roteiros da romancista de João Miguel, Caminho de Pedras, As Três Marias e Dôra, Doralina; da autora das peças “Lampião” e “A Beata Maria do Egito” e da cronista de A Donzela e a Moura Torta, O Brasileiro Perplexo e As Menininhas e Outras Crônicas.
O romance, pois, se de enorme interesse na moderna ficção brasileira – e particularmente na novelística nordestina – é também de interesse crítico flagrante no círculo da vossa própria obra. Um lado explicativo da obra nele se coloca em consequência das constantes literárias que permanecem como raízes. E não é por outro motivo que os livros posteriores, ao invés de distanciarem-se, reprojetam-se em O Quinze. Temos que considerar, pois, a participação no ciclo nordestino e a interferência na moderna ficção brasileira.
O ciclo nordestino, efetivamente, ao encontrar-se com O Quinze, como que se renova nas próprias bases. É o documentário, enxuto e realista, que nasce para espelhar uma região de sofrimentos. A ficção se põe a serviço da brasiliana no sentido de, refletindo uma região típica em toda sua fermentação social, valorizá-la no cerne mesmo dos problemas humanos. É através desse conteúdo, que configura o ciclo na própria variação temática – e à sombra de figuras como o retirante, o cangaceiro e o beato – que se precipita para interferir na moderna ficção brasileira. E, na contribuição que oferece, vem o acervo estilístico na linha da expressão direta e da incorporação da fala; o acervo temático na base dos problemas sociais como a seca, o cangaço e o fanatismo, e o acervo técnico no sentido do processo narrativo moderno já com o esquartejamento da ação episódica. E, se o romance O Quinze pôde assim concorrer para revalorizar o próprio ciclo nordestino, está claro que reivindica uma colocação histórica na moderna ficção brasileira.
Não há como discutir-se, em verdade, esta colocação. É tanto que se torna uma das primeiras consequências do movimento modernista como resultado da experiência linguística fora da Poesia. Esse nativismo realista, porém, embora de conteúdo regional, ultrapassa já O Quinze o romance de costumes porque aciona a matéria social em todas as consequências. A revelação que provoca é de fato um testemunho e, porque o é, converte-se numa espécie de julgamento.
Mas, se engendra pela ficção o julgamento de um tempo, nada mais necessitaria para impor-se como de validade extrema. Provam-no os próprios elementos da ficção. No tipo social, homem ou mulher, não faltam a personagem e a caracterização. No episódio, sempre um retrato ostensivo, está presente a cobertura literária. Atmosfera e cenário se completam e completam o conjunto. Abrindo esse caminho – que alarga o ciclo nordestino – O Quinze responde pela obra posterior e a justifica como partindo de uma base de centro.
A ficção posterior, pois, vossa Novelística e vosso Teatro encontram em O Quinze uma das principais referências críticas. Pusestes nele, em verdade, a vossa identidade. Os grandes recursos, responsáveis pela continuidade da atmosfera ficcional em todos os romances e todas as peças, têm aí sua origem. Concentra-se o drama da seca e a história de alguns, convertendo-se em história de todos, expõe o sofrimentco e a piedade em sua projeção maior que é a dos dias comuns. No fundo da desolação, que compusestes na febre dos nervos, há vida nos corpos e dor nas almas. Articulam-se os quadros e a realidade literária – de tão visual – torna-se um mundo animado. E, força nesse mundo, a figura humana com interesse excepcional na personagem feminina.
É através da personagem feminina, efetivamente, que vós, atingindo a órbita social e aspectos do problema humano nordestino, fizestes do Teatro um veículo para a auscultação. Em O Quinze, aliás, com chave no diálogo e na cena imediata, na personagem e no episódio, a Dramaturgia já se revelava à sombra mesma do documentário. Tornar-se-á mais objetiva, fazendo-se sobre o acontecimento, quando os temas são o cangaço e o fanatismo. Em ambos os casos, no fundo das peças – “Lampião” e “A Beata Maria do Egito” – é a mulher que aciona a ficção como vida e humanidade. A inquirição psicológica, movida por vossa percepção feminina, situa a mulher nordestina frente aos três dramas: a seca, o cangaço e o fanatismo. É Conceição, em O Quinze; é Maria Bonita, em “Lampião”; é a Beata, em “A Beata Maria do Egito”.
Essa mulher sertaneja, que apenas em vossa ficção dispõe de conformação precisa na grande saga do Nordeste, não se isola individualmente porque se integra nos próprios dramas regionais. Os dramas crescem porque ela está presente, deles participa, anima-os de paixão. Explicando-os mesmo, a esses dramas de tessitura social, Maria Bonita e a Beata não escapam à influência de O Quinze. O palco poderá abrigar mais vida, revelar mais fisicamente as situações, mas as constantes temáticas não ultrapassam o romance. A romancista, que sois vós, poderá aceitar novos roteiros como em Caminhos de Pedra, As Três Marias e Dôra, Doralina – em decorrência da experiência amadurecida, mas a verdade é que O Quinze permanecerá como a base do encontro.
E permanecerá sobretudo nas duas peças que compõem o vosso Teatro – “Lampião” e “A Beata Maria do Egito” – peças que, pela importância literária, situam uma verdade quando obrigam a revisão crítica. E a verdade é que o Teatro brasileiro, ao contrário do que se verificara com a Novelística e a Poesia, só posteriormente participaria da eclosão modernista revolucionária. Podeis estar certa, Sra. Rachel de Queiroz, de que muito concorrestes para isso quando, em vosso Teatro, o nativismo regional surgiu como um espaço capaz de exprimir o drama. A peça “Lampião”, ao impor ao movimento renovador a condição brasileira como matéria de validade artística, abriu de fato a nova perspectiva que “A Beata Maria do Egito” consolidaria.
Na peça “Lampião”, isolando a paisagem nordestina, o que fizestes foi dela retirar o seu tipo social mais característico: precisamente o cangaceiro. Transfigurá-lo, situando-o na literatura heroica, seria um direito vosso e com defesa, aliás, no melhor exemplarismo clássico. Fiel ao depoimento, porém, preferistes arrancar da vida a própria peça e fixar com realismo a figura de Lampião. A personagem, afinal, fora um homem e possuíra um caráter. E, por isso mesmo, dispunha de crônica e de estória excessivamente vivas na tradição oral. O desafio seria o de limitar os recursos imaginativos para, favorecendo o trânsito biográfico, respeitar o homem na crua fixação do caráter. O enquadramento literário exigia – da vida para o drama – mas exigia os valores sociais e humanos.
Fizestes, porém, o que devia ser feito. E por isso, quando o drama se abre no momento em que Lampião se encontra com Maria Bonita, a personalidade da personagem de tal maneira se mostra que não a entenderemos senão como a resultante de um código moral bruto. O triângulo é primitivo – justiça, vingança, liberdade – e, em consequência, eterno. O cangaceiro existe em função do código e, na evolução do drama, a mulher permanece no bando como um ser isolado, e isolado não porque seja mulher. Maria Bonita, ao ingressar no grupo por motivos que não estão no código, permanece em conflito, com a adaptação incompleta, a afinidade sendo maior entre o cangaceiro e os cangaceiros que entre o homem e sua mulher. E, porque o código é que a impõe, a variação não é biológica, mas sociológica.
Pudestes demonstrar, deste modo – com as peças “Lampião” e “A Beata Maria do Egito” – que, a vossa preocupação foi a de trabalhar um gênero literário como o Teatro para auscultar a alma brasileira numa espécie de mural primitivo. E, sobretudo, pudestes demonstrar que, como povo, temos os nossos próprios valores entre os valores humanos.
Não será difícil verificar, já agora, por que a vossa Dramaturgia se relaciona com o romance O Quinze. Ele, o vosso romance de estreia, continua sendo a base do encontro. E tanto que, ao retomarmos o veio novelístico de vossa obra literária, temos que admitir João Miguel, por exemplo, como uma extensão de O Quinze em outro espaço. É um homem comum, João Miguel, seu crime e sua mulher. Mas, como em O Quinze, como nas peças de teatro, a grande preocupação, sendo principalmente humana, é social no sentido de uma fixação do mundo nordestino. O drama da seca, rural em sua agressividade, tem a complementação na pobreza urbana. E, como fechando o círculo, a pequena sociedade burguesa, e na comunidade provinciana, não tarda a surgir com As Três Marias.
A base do encontro, como se verifica, ainda é o romance de estreia. Comprova-o, e quase meio século depois, o romance Dôra, Doralina que, apesar da extroversão como nos romances anteriores, tem na figura – a criatura humana de todos os dias – a própria razão de ser da ficção. A veracidade, herdada de O Quinze e que domina fisicamente cenários e ambientes, de tal modo excede nas caracterizações das personagens que as impõe como gente de registro civil. O exemplo maior outro não será senão Dôra, ou Doralina. A aparição é tão sensível na dimensão humana – vivendo, amando, sofrendo – que a temos em carne e sangue e nervos como símbolo e imagem da nossa própria condição.
A ficção, na Dramaturgia ou na Novelística que se ilustra com o romance de Dôra, Daralina, assim enraizada em O Quinze, demonstra que em vós a preocupação social – nascida da preocupação humana – não será traída. No romance mesmo, nesse romance O Quinze, os componentes já denunciavam a escritora que não tardaria a valorizar a crônica e transformá-la em instrumento de ação literária. O poder de observação, a linguagem direta, a percepção objetiva, a capacidade de testemunhar, tudo isso define a cronista que atingiria a participação para impor o debate. A cronista, aliás, nascida estava em alguns dos quadros e em inúmeras situações de O Quinze.
E vale verificar como a crônica, entre a Novelística e a Dramaturgia – e a exemplo do que já ocorrera com Aluísio Azevedo – não contraria as constantes literárias de vossa ficção. O trabalho, inspirado no acontecimento imediato e por isso mesmo jornalístico, se processa através daquelas constantes. A personagem dispõe de caracterização como no romance e na peça de teatro. O episódio vinga pelo movimento e o realismo. O recurso descritivo é igual, seco em sua densidade, refletindo concretamente a imagem, o quadro e a figura. A crônica, finalmente, e por que instrumento de ação literária, permite a vossa maior constante que é precisamente a preocupação social.
É o debate, é o julgamento, é a opinião.
A base do encontro, que é o romance O Quinze, esclarece a colocação de vossa obra literária. Por este lado, e à sombra do reconhecimento crítico, nada a discutir e a acrescentar. Mas, fora do reconhecimento crítico, como explicar a base do encontro que, na diversidade dos gêneros, faz de vossa obra literária um monobloco de unidade e coerência? Como explicá-lo, em verdade, como explicá-lo?
O ato de escrever, que é o mais público de todos os atos – primeiro o Romance e depois o Teatro e a Crônica – demonstra que vós sois, desde o primeiro dia, uma participante. E sempre foi vosso o interesse flagrante pela criatura como parte da humanidade e de um povo. Um pouco da personalidade de um ator, talvez, no sentido de participar na personagem sem alienar a sua própria personalidade. Essa aceitação assim responsável, sempre um desafio à vocação criadora, revela-se na tradutora e na tradutora de gente como Dostoievski e Emily Brontë.
Mas, e porque excessivamente participante, vós não tínheis como ficar entre os livros com as janelas fechadas. O mundo do lado de fora – principalmente o mundo brasileiro, social e geográfico, cultural e humano – sempre reclamou o vosso sangue e os vossos sentidos. E é certamente por isso que, como escritora, sois incapaz de criar literariamente fora da participação. A vossa inspiração está no grande encontro com as criaturas, os seres e as coisas e, por isso mesmo, frente às realidades imediatas. A verdade é que, não sendo uma intimista, muito menos um poeta a reinventar universos, vosso caminho criador se processa pelo testemunho, de ver ou de ouvir, mas pelo testemunho.
E por isso mesmo – reanimando a paisagem e a gente que estão em volta, o drama que conheceis, o humilde cotidiano do homem comum – é que jamais pudestes evitar, através da Crônica, o jornalismo literário. E não é por outro motivo que o acontecimento, mais que a saga, provoca a vossa motivação. Sabeis como transmitir a esse acontecimento a compreensão afetiva que, vinda de vós, já se denuncia como a própria participação. E por isso mesmo o mundo exterior poderá mudar, alterar-se, mas a primeira identidade física não será esquecida.
Afetivamente, para vós, Sra. Rachel de Queiroz, sempre existirá o que existiu como existiu. Provam-no o vosso sertão, a vossa cidade e a vossa ilha. Não são espaços vazios porque, humanizando-os, vós os mostrais como se vidas neles escorressem com destinos e almas. É o poder, o extraordinário poder da participação – vós que estabelecestes a própria liberdade como exemplo para a liberdade de todos – a vossa interferência para que pessoas não sejam ameaçadas ou feridas. Há valores a proteger, é verdade, também há princípios. E não por outra coisa sempre reclamastes o diálogo, denunciando o escapismo e a fuga, pedindo reconhecimento e soluções para os grandes problemas. E se vossa solidariedade sempre foi indiscutível, a humana compreensão não afasta a análise fria, crises e conflitos submetidos ao processo lógico que reflete a vossa auscultação interior. Essa é a auscultação que prova que, em vós, a inteligência tudo comanda.
E comandou inclusive vossa vocação para que uma definitiva e autêntica obra literária se fizesse. O vosso lugar nesta Casa, pois, não é apenas vosso. É também e sobretudo da Literatura Brasileira, porque ninguém a serviu melhor que vós, Sra. Rachel de Queiroz, com talento e amor, respeito e dignidade.
4/11/1977