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A voz do povo

 

Um dos maiores legados do Plano Real, trinta anos depois, foi fazer com que a sociedade compreendesse a importância do controle da inflação. O plano só deu certo porque a população já não aguentava mais viver sob a hiperinflação, e aceitou todas as mudanças, inclusive aprendeu a lógica da URV - Unidade Real de Valor -, ponto crucial para a implementação do plano.

O país viveu muitos anos sem entender que a desvalorização da moeda prejudicava o dia a dia da população, e por isso os governadores usavam e abusavam de seu poder para ganhar eleições. Ficou famoso o comentário atribuído ao então governador de São Paulo Orestes Quércia, ao eleger Luiz Antonio Fleury Filho seu sucessor no governo de São Paulo em 1990: “Quebrei o banco, mas elegi meu sucessor”.

Referia-se ao Banespa, um dos mais potentes bancos públicos do país, que Quércia utilizou para financiar obras na campanha para governador. Com o Plano Real, todos os bancos estaduais foram privatizados, mais uma das ações para consolidar o combate da inflação, pois, praticamente sem exceção, os bancos estaduais eram usados para ações políticas, especialmente em vésperas de eleição.

Esse detalhe de um vasto plano econômico demonstra que a sociedade em geral não ligava para os efeitos desses gastos públicos nas campanhas eleitorais, pois não entendiam que aqueles “investimentos” a longo prazo teriam como contrapartida o aumento da inflação, voltando-se contra ela.

Hoje, o hábito de descontrole de gastos continua sendo uma característica dos parlamentares brasileiros e dos governos populistas, mas já provoca a reação da opinião pública. Há muitos controles dos órgãos públicos durante as campanhas eleitorais e, mesmo quando os abusos do dinheiro público garantem a eleição de um candidato, os efeitos deletérios desse gasto acabam corroendo a credibilidade dos governantes.

A falta de controle dos gastos públicos é a origem do desgaste do governo Lula neste momento. Já existe a sensação de que a retórica do presidente encaminha uma ação populista que acabará levando à alta da inflação de médio a longo prazo. Ao assumir o governo em 2003, em seu primeiro mandato, Lula teve o bom senso de dar continuidade à política de equilíbrio fiscal iniciada no governo Fernando Henrique, e teve sucesso.

Mesmo queixando-se permanentemente de uma suposta “herança maldita”, manobra para justificar possível fracasso, o primeiro governo petista, depois de três derrotas seguidas nas eleições presidenciais, teve êxito e reelegeu Lula, que fez sua sucessora Dilma Rousseff. Bastou, no entanto, que tentasse uma política econômica heterodoxa, com a malfadada “nova matriz econômica” de Guido Mantega, para que todo esforço de equilíbrio fiscal fosse por água abaixo.

Até hoje sofremos as consequências de uma política expansionista que começou no segundo governo Lula para eleger sua sucessora, e temos de volta a mesma base populista que impede um ajuste necessário para estancar a crise que se avizinha. A diferença para agora é que no primeiro governo Lula tinha a seu lado Antonio Palocci como ministro da Fazenda, uma antiga liderança petista respeitada pelo establishment partidário, que também estava no governo, acatando até mesmo Henrique Meirelles, um banqueiro internacional eleito deputado federal pelo PSDB, na presidência do Banco Central, surpreendente escolha de Lula que indicava intenção de manter o equilíbrio fiscal.

Hoje, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é mais respeitado pelo mundo financeiro do que pelo núcleo duro petista, que rejeita muitas de suas decisões. Haddad tem em seu desfavor o fato de ser o petista mais indicado para substituto imediato de Lula na corrida presidencial caso o presidente não queira disputar a reeleição. Mas, ao afirmar que ele é o povo no poder, Lula dá-se o direito de ser infalível, pois a voz do povo é a voz de Deus.

O Globo, 30/06/2024