Peço licença a um "provável leitor", como poderia ter escrito Machado de Assis em uma crônica. Se alguém da estatura dele, tão genial, imaginava a possibilidade de ninguém querer ler a carta do dia, então peço licença, pois vou visitar esta casa onde escreveram Marcelo Rubens Paiva, a ministra Marina Silva, até mesmo Zé Celso e o escritor Paulo Coelho, meu colega na Academia Brasileira de Letras.
Olhe a galeria de pessoas geniais, como a professora Marilena Chaui —vamos agora abrir a chamada às mulheres. A vocação patriarcalista está presente nos textos das narrativas quando a gente começa uma história dizendo qualquer coisa como "meus colegas", pois estamos generalizando o gênero.
Assim, posso compartilhar com meu provável leitor a ponte que me liga a este território de colunas, crônicas, artigos e reportagens. A ponte que me liga a este lugar é Glauco, o cartunista, a Laerte e o Angeli, que sempre fizeram me interessar por alguma coisa além da página que eu estava vendo no cartum deles, e Marcelo Rubens Paiva —a gente compartilha mundos há pelo menos uns 40 anos.
É este então um riacho de muitas águas, com gente de muitas constelações. Lembro que o empresário Antônio Ermírio de Moraes, durante um bom tempo, abrilhantou o ambiente com as crônicas dele sobre o bandeirantismo paulista, aquele espírito bandeirante. Então, esta coluna converge, diverge e, como diz o Nêgo Bispo, ela conflui para insondáveis cruzamentos de visões, quase convictas de que, se não formos capazes do exercício da democracia, estamos todos ferrados.
Eu me lembro, na minha juventude pelo menos, de grandes escritores e cidadãos, como Betinho, que lançou a campanha contra a miséria e a fome, igual um Dom Quixote se levantando e dizendo: "Bom, agora nós vamos ter que enfrentar os moinhos". Fico pensando na geração que experimentou a liberdade de imprensa com a volta das eleições diretas, que restauraram a democracia; quem tem essa linha do tempo na cabeça é da minha geração.
Somos a geração das pessoas que estão atravessando os 70, com alguns ainda tentando, como Beto Guedes, Lô Borges, o Clube da Esquina, o cinema, as pessoas, a vida, a vida e a roda da vida, que ora pendula para um lado e, da maneira mais voluntária, bandeia para qualquer lado como se fosse uma biruta de aeroporto.
Quando eu era criança, observei que todo brasileiro era católico. Missa, coreto, um sino; todos da minha geração viam isso. Éramos um paizão católico. Nós fomos, em algum momento, chamados até de América Latina católica; quer dizer, não é sobre o Brasil ser um continente católico, exceto que o continente foi perdendo expressão e nós fomos nos tornando bairristas e regionalistas.
Achei tão curioso, quando Itamar Vieira Junior publicou "Torto Arado", o mal-estar e a surpresa ou o desarranjo que afetou algumas pessoas, a ponto de dizerem que ele era um autor regionalista. Aí eu pensei: olha, a primeira mulher que entrou na Academia Brasileira de Letras foi Rachel de Queiroz, a maior escritora brasileira identificada como regionalista, como se a literatura brasileira fosse somente aquela feita no Sudeste. Um claro preconceito contra o Nordeste ou tudo que não é Rio ou São Paulo.
O que dizer, por exemplo, dos escritores amazonenses, como Márcio Souza e Milton Hatoum, e da escritora pernambucana Micheliny Verunschk, que nos legaram o melhor da literatura na passagem do século 20 para o 21? Cito uma crônica muito agradável feita pela Heloísa Teixeira, minha colega na ABL, reportando a entrada da primeira mulher na casa da lusofonia, com o significativo título "A roupa da Rachel", que apresenta a biografia dessa mulher avante no seu tempo e faz referência ao lendário fardão da confraria.
Estou pensando como escriba daqui de cima do pico do Jaraguá, no tekoá guarani, que há mais de 70 anos abriga as famílias indígenas mbya guarani, como um dos mais relevantes suportes na cartografia das movimentações internas dessa etnia, cuja cosmogonia desenha um arco que recobre limites geográficos da Argentina, do Brasil, do Paraguai e da Bolívia.
Observo lá embaixo, daqui de cima do Jaraguá, onde as antenas e as torres cresceram como árvores centenárias, a megacidade de concreto, ferro e vidro. As torres de concreto e vidro são as árvores centenárias dessa pauliceia desvairada.
Prometo que, neste ano, vocês me ouvirão mais de uma vez evocando Mário de Andrade. Muita referência, ao menos, a Macunaíma, esse herói que tinha desaparecido do circuito da literatura e foi convocado a falar de novo nas artes, onde as vozes nativas já se fazem amplamente reconhecidas, inclusive na Bienal de Veneza 2024.
Para quem faz a primeira visita, tinha a intenção de puxar pela memória, daqui do túnel do tempo, alguns personagens ou acontecimentos que possam me ajudar, uma vez por mês, a entregar a crônica para este espaço que já tem Muniz Sodré e Txai Surui. Estou em boa companhia.