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Fernandona lê Simone de Beauvoir

 

Tenho escrito sobre a formação e o destino do homem brasileiro, como um tipo de consequência do que aconteceu entre nós nos últimos 4.500.000.000 anos, desde que o planeta começou a se formar. A inventar sua forma de confronto entre a natureza e o ser.

Criamos a ideia de que esses valores foram decisivos, sem eles não concluiríamos o que nós acabamos por representar, o único planeta em que aconteceu, em sua formação, o encontro entre esses dois elementos fundamentais na organização do ser humano com sua Origem. Era o suficiente para explicar nossa existência e o sentido dela.

Segundo a Bíblia, todo ser humano é um templo vivo de Deus. Acho a conclusão apenas mais ou menos. Dependendo do ser humano, tem uns que são mais “um templo vivo” do que outros. Pega um miliciano ou um bandido do tráfico, por exemplo. Tem uns que atiram por dá-cá-aquela-palha, entendendo por “palha” o que a gente está mesmo imaginando.

Por outro lado, tem seres humanos que, mesmo que se queira plantar em sua fama alguns sórdidos pecados, nada é capaz de pegar. E não pega porque a má fama seja talvez inconsistente; mas sim porque a pessoa é que é consistente demais, não importa qual seja seu tipo de fama. Fernanda Montenegro é uma delas.

Tecnicamente, Fernanda é uma atriz, deusa dos palcos, de todas as telas grandes do cinema e pequenas da TV. E do que mais se venha a inventar para nos contar a vida de gente. No Brasil ou por aí afora, poucas mulheres nos deram o que Fernanda já nos deu e segue dando, incansável em seu registro de almas. Pode ser que Bette Davis ou Jeanne Moreau tenham chegado perto; como perto há de ter chegado Cacilda Becker. Mas Fernanda é só ela.

Cultura nacional é a soma de todos os hábitos e invenções da população de um país. De tal modo que é pouco dizer-se que Fernanda Montenegro é uma atriz brasileira, nascida em tal lugar, no dia tal, do ano tal. Entre a pobreza do real e o exagero do sonho, ela nos mantém fiéis ao que gostamos de ser, ao que queremos ser. À soma do que somos, mesmo que não saibamos direito o que somos.

Porque Fernanda vive e viverá para sempre, em cada um de nós e nos que vierem depois de nós, como a própria imagem do Brasil e do ser humano que vive nele, passeando por entre nossas pobres três mil e poucas salas de cinema. Ou ainda pelas 40.700 salas dos americanos, ou pelas 50.776 salas dos chineses (hoje já devem ser mais!), pelo mundo afora a fim de exibir o que ela conhece melhor do que ninguém, o brasileiro.

O escultor Auguste Rodin dizia que as catedrais da França eram construídas como um corpo vivo. Então, digo eu, todo corpo humano é uma catedral. E o de Fernandona é a nossa basílica, a sede sagrada do que somos.

Vá correndo vê-la no espetáculo sobre textos de Simone de Beauvoir, Que está em cartaz no Teatro Casa Grande. Verá que tenho toda razão.

O Globo, 12/05/2024