Não há como não começar esse discurso registrando que, nesse minuto, nessa sala, estamos vivendo um momento histórico. Um dos maiores líderes dos povos originários do Brasil, pede para entrar na Casa de Machado de Assis, que o recebe de braços e portas abertas.
Nesse discurso, eu poderia falar sobre a oportunidade de estarmos vivendo hoje uma reparação histórica das barbáries coloniais, poderia falar da continuidade, também histórica, do extermínio, perseguição e exclusão destes povos. Poderia falar ainda da importância e da urgência das causas ambientais no quadro de um capitalismo voraz que avança natureza adentro em busca de lucro. Tudo isso é dramaticamente atual. O relatório final da Comissão Nacional da Verdade mostrou violações graves de direitos humanos aos povos indígenas, bem como a conduta do Estado, gerando os conflitos recentes de 2023. Infelizmente, essas práticas históricas revelam a violência estrutural enfrentada pelos povos indígenas até os dias de hoje. A discussão sobre o Marco Temporal continua em pauta, sem resolução. Só nesta última terça feira, a Comissão da Anistia formalizou a reparação aos Krenaks e aos Guyrarokás pelas perseguições, prisões , torturas, rabalhos forçados e deslocamentos compulsórios durante a ditadura.
Este é um primeiro ato a ser celebrado em tantos anos de processos de extermínio seja pela ditadura, seja pela omissão do Estado Brasileiro.
Mas sou uma pessoa de pequenos cenários. Abandono os grandes temas e vou falar sobre o aqui e agora.
Nesse momento, Ailton Krenak toma posse na cadeira nº 5, que pertenceu a José Murilo de Carvalho, um dos orgulhos dessa Casa. E , também, à Rachel de Queiroz , a primeira mulher que rompeu as barreiras do fardão e da espada, entrando aqui, com passos decididos, acompanhada de uma festa de proporções e expectativas parecidas com as de hoje. A cadeira do poeta Bernardo Guimarães, parece que tem alguma coisa especial que atrai o Fazer História na Casa de Machado de Assis.
É para essa cadeira privilegiada, que recebemos não só um novo e brilhante acadêmico mas, principalmente, junto com ele, um fascinante universo de territórios, pensamentos e cosmologias indígenas. Por exemplo, Ailton nos traz consigo , nesse momento, cerca de 180 línguas para a ABL, cuja missão, - até hoje pelo menos -, é a preservação e desenvolvimento de uma única língua: a portuguesa. É esse o tamanho da chegada, nesta noite, de Ailton Krenak na Academia Brasileira de Letras.
Meu papel aqui é apresentar e receber nosso mais novo acadêmico. Vamos lá.
Ailton, pertence ao povo Krenak, cuja história é traumática e longa marcada por confrontos e deslocamentos. Os Krenak percorrerem um longo caminho de fugas que começam no Recôncavo até se fixarem numa área reduzida do Vale do Rio Doce, reconquistada com muita luta e com muita dor. Provavelmente, a mesma dor que modelou o sonho e o grito do poeta Ailton Krenak e o transformou nesse líder político cuja importância é reconhecida no mundo inteiro.
Aos dezessete anos, diante de embates com fazendeiros e madeireiros, os Krenak se dispersaram, em direção a São Paulo e Paraná. Ailton aprende a língua e a cultura dos colonizadores, forma-se em jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora / e começa a ganhar consciência global sobre um possível desaparecimento dos povos originários.
Nasce o ativista Ailton Krenak, que passa a se dedicar exclusivamente à defesa da cultura e da causa indígena no país. São os primeiros anos de caminhadas, viagens, mobilizações e encontros com outros povos irmãos de norte a sul do Brasil.
Em 1983, Ailton organiza o primeiro encontro com representantes de nações indígenas em Brasília.
Em 1987, líder já reconhecido, participa da elaboração da Constituição de 1988, defendendo o artigo 231, o “Capítulo dos Índios” .
Em 4 de setembro de 1987, em plena Constituinte, Ailton fez um pronunciamento contundente que reverberou por todo o país, numa performance livre e desconhecida da linguagem política. Apesar de já muito divulgado, não consigo não mostrar , mais uma vez, esse momento icônico a todos aqui. vídeo.
Com este gesto simbólico de luto, marcado com pasta de jenipapo no rosto, Krenak mobilizou a opinião pública e os parlamentares na aprovação dos artigos 231 e 232 da Constituição, referentes aos direitos originários de suas terras, à validação de sua organização social, costumes, línguas e crenças. Nesse mesmo ato, os indígenas foram reconhecidos como cidadãos e, portanto, aptos a solicitar amparo legal na defesa de seus direitos.
Ainda em 1979, Ailton participa num segundo episódio, não menos importante: A fundação da União das Nações Indígenas, que agregou, de saída, mais de 100 nações contra as invasões territoriais e a destruição de suas tradições. Um ano depois, mais um passo a frente: A criação da Aliança dos Povos da Floresta, que reuniu, pela primeira vez, indígenas e seringueiros em defesa da demarcação de terras e da criação de reservas extrativistas na Amazônia. Em seguida, em 1985, Ailton retornou a Minas Gerais, onde criou o Núcleo de Cultura Indígena, importante centro de referência que agrega um Núcleo Educativo e o Museu de Cultura Indígena.
São muitos os prêmios, ações e avanços políticos nos caminhos de Ailton. Em 1990, recebe o Prêmio Aristóteles, oferecido pela Fundação Onassis, em Athenas. Em 2005, foi coautor da proposta da UNESCO para a criação da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço, dedicando-se, desde então, à conservação do ecossistema no país.
Como forma de reconhecimento, Ailton Krenak foi honrado como comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República e a esta homenagem se seguem, em 2016, a outorga do título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Em 2022, recebe mais um título de Doutor Honoris Causa desta vez pela Universidade de Brasília, ganha o Prêmio Juca Pato como Intelectual do Ano, dado pela União Brasileira de Escritores e foi eleito para a Academia Mineira de Letras. Agora, sua história ganha mais um capítulo. Ailton Krenak foi eleito imortal pela Academia Brasileira de Letras no dia 5 de outubro de 2023, no dia exato em que a Constituição completou 35 anos.
Isso não é tudo que pode ser dito sobre Ailton Krenak. Mas acho que dei, razoavelmente, conta da minha tarefa de apresentar o novo imortal.
Mas, aí vem uma dúvida martelando na minha cabeça: será essa uma forma correta de apresentá-lo?
Será que eu não teria, mais uma vez, colonizado Ailton ao domesticar sua história com valores tipicamente brancos e ocidentais? Começo a achar que a descrição de seus feitos e prêmios, não dão minimamente conta dos vários mundos, memórias e histórias que nos aportam o novo acadêmico.
O mito de criação de Ailton Krenak que acabo de apresentar não poderia ser recontado de forma radicalmente diferente pelo próprio Ailton? Refaço a pergunta, de forma mais genérica. A trajetória de um pajé (e aqui me permito chamá-lo de pajé) ou de um poeta pode ser contada de forma linear? Pergunta colocada, não me parece mais que seus feitos meritocráticos sejam, na realidade, marcos suficientes para apresentação de sua trajetória.
Afinal seu tempo obviamente não é o mesmo que o meu. O meu é um tempo que se desenvolve inabalável no caminho de uma verdade. O dele, não é conclusivo. É circular, ou melhor, espiralar.
Ficou claro que, para chegar mais perto do novo imortal, é importante abandonar as narrativas oficiais, como as que fiz há poucos minutos atrás, e procurar ouvir suas histórias, acompanhar seu tempo viajar junto com ele numa infinidade de percepções que se superpõem sem que sejam domesticadas, numa única linha lógica do tempo.
É desta forma também que se dá o ativismo político de Ailton: contar histórias, ouvir histórias. Ailton Krenak visitou cada uma das comunidades indígenas do país, abrindo trilhas para os mais jovens, acompanhando e incorporando as falas de povos irmãos, agregando e repercutindo suas cosmopolíticas.
Uma comprovação da centralidade da palavra e seu contar no perfil de Ailton é a escassez de dados objetivos sobre sua vida. Achei algumas referências em jornais, ou na família wikipidia, contra centenas de falas e narrativas suas espalhadas no youtube ou outras mídias.
Fica evidente, para o pesquisador mais atento, que a verdadeira história de Krenak vem sendo registrada em narrativas orais, rejeitando qualquer falsa objetividade. Vem em ondas mansas, num ir e vir de fragmentos, pensamentos incompletos, sonhos, desenhos, conversas na rede, conversas no rio, no pé das montanhas, e mesmo em what’s ups, travados entre amigos.
Narrativas que abrigam várias versões do mesmo fato, que não se querem fechadas ou definitivas. Esse é o acervo real e disponível para quem quer conhecer Ailton Krenak. Um caminho bem distante das metodologias e fontes da ciência ocidental.
A grande referência para a pesquisa sobre Ailton é a Biblioteca Ailton Krenak que contém mais de 150 horas de falas suas, registradas online desde 2012. Uma biblioteca feita de imagens e dizeres, caracterizada pelo próprio Ailton como “uma biblioteca irreverente, uma biblioteca que fala, que não pede silêncio”.
Nesta Biblioteca, temos uma obra de literatura gigantesca, talvez não legitimada porque o que reconhecemos como literatura, precisa da grafia, precisa do papel. Obra que se completa no material abrigado no projeto Selvagem que desenvolve com Ana Dantes: encontros focados em ideias, em caminhos a serem descobertos, em modulações de pensamentos verbalizados.
Não é que ele não tenha livros. São mais de 15 livros publicados e traduzidos em várias línguas. Mas que constituem, a meu ver, uma mostra ínfima de seu acervo literário que não está em papel, mas que revela, com mais justiça, o conjunto de sua obra.
Não prestamos muita atenção quando, tantas vezes, o novo acadêmico reafirma: “Não sou escritor. Meus livros são apenas transcrições de palestras ou falas minhas. Eu conto histórias, não faço parágrafos”. Mas, é curioso que a leitura de seus livros impressos produz um encantamento particular. E esse encantamento, me parece, vem de sua oralidade original. Esses livros, são livros falados que voam para todos os lados, que criam mundos possíveis, são fábulas que não obedecem a nenhuma lógica narrativa literária. Nosso novo acadêmico habita, seguro, o campo da oralidade, “esse oceano de sabedoria”, como diz ele. E é, exatamente, esse imenso universo da oralidade, o que de melhor ele traz para a Academia Brasileira de Letras, rompendo , de uma só vez, a tradição letrada e lusófona desta Casa.
Mas volto à oralidade lato sensu. Aqui, a oralidade não é apenas uma questão de riqueza linguística. A oralidade também faz História. É a partir da força das palavras que o tempo é retido em narrativas que buscam origens e cosmovisões, que, afinal, é o que mantêm unidos povos e naturezas.
Por outro lado, também, a linguagem oral é a única linguagem possível para expressar o pensamento selvagem. É importante ressaltar aqui, que pensamento selvagem não se confunde com o pensamento do selvagem. O pensamento selvagem é um pensamento em estado selvagem / que nunca foi colonizado, / organizado. Num desses vídeos disponíveis no youtube, a que me referi, / da série conversas na rede, / ouvimos Ailton e o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, numa conversa solta de quaisquer amarras ou metas, pensando juntos o mito e a ciência em Levi Strauss, / e discutindo a noção de pensamento selvagem. O pensamento selvagem que se atém às qualidades estéticas, aos detalhes, ao particular, ao sensível. Não muito distante da esfera da poesia, que é onde Ailton transita com total naturalidade.
Não me refiro à ideia de poesia de Platão que a expulsa da República, mas aquela de Nietsche. Nietsche que, quando se propôs a repensar a filosofia, foi procurar apoio na poesia trágica do período clássico e assim se justificou: Eu preciso da arte para não morrer da verdade. Verdade essa, que, na época, era a verdade científica, a verdade descritiva do positivismo.
Poesia ou poiesi é o ato da criação. E o que significa criar? Trazer pra cá o que não estava aqui. Fazer aparecer. Retirar as ocultações. Desencobrir. Não é outra coisa que faz Ailton quando imagina cartografias, descobre camadas de mundos, mostra o que não estamos conseguindo ver. É o desvendar de mundos imateriais, mundos de fruição onde se possa ‘pular de paraquedas coloridos’ como diz ele. Não foi à toa que Ailton elegeu a poesia para se articular com o mundo branco. É o que sinaliza quando escreve o posfácio da nova edição de O sentimento do mundo, de Carlos Drummond de Andrade. Nesse texto, ficamos sabendo que Ailton descobriu a literatura aos 20 anos de idade e que para ele Drummond “lhe traz uma identificação imediata com a maneira como o poeta estranha o mundo”. Ailton não teria chegado, de fato, na Academia Brasileira de Letras na pele de um pajé-poeta para nos ensinar formas mais substantivas de estranhamento, de relação com a natureza e com a própria vida?.
É acreditando nisso que digo: SEJA BEM-VINDO Ailton. E chegue logo, abrindo seu terreiro neste Petit Trianon, empunhando suas histórias e sonhos, e crave , nesse terreiro, um raio de luz / que traduza melhor esse mundo, hoje, tão desesperado. Obrigada.