Eu, nesse ritual, devo saudar as autoridades que estão aqui, cumprimentar a querida Ministra Margareth Menezes, que está aqui nos abrilhantando nesse encontro tão cordial, que nos anima a imaginar uma sociedade mais amorosa, muito mais cuidadora uns dos outros e que está aqui expressando uma disposição da cultura dessa nossa república, em relação a essa alma de uma nação que é a cultura. Uma nação sem cultura não tem o que dizer. Para mim é uma honra contar com a presença da Ministra, dessa maneira tão gentil e acolhedora.
Quero cumprimentar o Ministro Silvio Almeida, que, ao longo desses anos, se tornou também meu amigo. Nós tivemos a oportunidade de participar de alguns debates onde eu me alinhei admiravelmente com a maneira que ele lida com a nossa complexa realidade. Realidade complexa em todos os sentidos e que ele se esforça para traduzir também em uma prática ativa da defesa da vida, dos direitos humanos, que é onde está agora a sua missão nesse Ministério dos Direitos Humanos. Quero cumprimentar ao querido parente, que agora ele tem também essa atribuição em um Ministério que o nosso país inaugurou, que é o Ministério dos Povos Indígenas, onde ele teve, desde a implantação desse Ministério, a tarefa de ajudar a estruturar aquele gabinete. Eu fico muito feliz de Eloy Terena, Ministro-Substituto do Ministério dos Povos Indígenas, estar aqui. É um desses jovens que foram forjados ao longo desse curto período que nos separa da Constituinte de 1987, até esse ano de 2024. Fiquei muito feliz, claro, com a presença da minha querida Joênia Wapichana, Presidente da FUNAI, agência do Estado brasileiro, que é muito suscetível às marés e que, às vezes, fica subjugada a um contexto como aquele que nós vivemos recentemente, em que alguém dizia: não vamos demarcar um centímetro de terra aos índios.
E, quando essa agência está subordinada a um chefe de governo que afirma isso, essa agência fica paralisada. E a nossa querida Joênia tem a missão de fazer mover essa pedra, como dizia o poeta, o nosso querido Carlos Drummond de Andrade, que eu sempre invoco como meu escudo invisível. Então, sempre que eu estou pensando sobre o que faremos, eu invoco Drummond. Drummond é um remédio para dor de cabeça e outras dificuldades. Viva Drummond! Eu devo saudar o Presidente Da ABL que me acolhe aqui, o jornalista Merval Pereira, que eu admiro e que eu estou conhecendo um pouco mais agora que ele me convida para o Chá. O Antônio Carlos Secchin, eu cumprimento pelo tanto que ele tem se disposto a me ajudar. Ele praticamente produziu esse texto que vocês vão me escutar lendo. Como eu já tive a vantagem da minha querida, ela me deu licença para tratá-la assim, a minha querida colega, Acadêmica Heloísa Teixeira. Eu perguntei para a Heloísa, eu devo te chamar de confreira? Ela disse: “nossa, essa palavra é muito feia”. Eu falei, você me permite te chamar de companheira? Ela disse: “pode me chamar de senhora, querida, colega acadêmica”. Eu falei, então eu vou me sentir muito mais à vontade se eu puder tratar as admiráveis senhoras que fazem presença aqui nessa Academia Brasileira de Letras como colegas, porque elas estão trilhando, com o mesmo estranhamento, esse lugar que eu estou acessando agora. Não é uma questão de gênero, mas é uma questão de perceber o mundo de maneira diversa. Então, eu quero cumprimentar as queridíssimas acadêmicas, na pessoa da acadêmica que eu admiro muito e que sempre me convocou com muita determinação para que eu viesse para cá, Fernanda Montenegro.
Eu não vou conseguir nomear cada uma das pessoas que me alegram de estar aqui. Então eu estou usando esse recurso narrativo de nomear alguns por todos. Mas isso não diminui o afeto, o carinho que eu devo a cada um desses queridos. E cumprimentar um raro autor, que esse eu posso chamar de confrade, Antônio Torres, por ter trazido à literatura um breve fragmento de quando os povos originários daqui, guiados por guerreiros como Cunhambebe, e ele me lembrou hoje também do Aimberê, que ergueram a confederação dos Tamoios exatamente aqui nessa paisagem carioca, para mostrar para os novos colonizadores ou, para os viajantes que ainda nem tinham aportado direito aqui e alguns estavam entrando nas ilhas para formar uma França Antártica, outros estavam tentando fazer alguma coisa no Maranhão ou no Pará. E, aqui, os povos daqui decidiram se levantar na Confederação dos Tamoios. Eu fiquei muito feliz de ter um colega que vai poder conversar comigo sobre a bravura do Cunhambebe. Era um sujeito muito corajoso, senão ele não teria ficado de pé aqui nessa baía da Guanabara. O Acadêmico Geraldo Carneiro, Geraldinho, esse poeta querido, que sempre me acolheu também com essa afável graça, não me deixa nem um pouco intimidado, mesmo quando me oferece uma espada. E eu vou pedir socorro para cumprimentar os que estão mais à minha esquerda, o Acadêmico Paulo Niemeyer, o nosso querido Paulo, que está lá perto da Joênia. Esse salão é muito grande. Ainda bem que a gente tem microfone, para que a gente possa avistar e nomear cada um desses maravilhosos pensadores, escritores, autores, poetas e cineastas. Quando eu vejo o Carlos Diegues, eu lembro que existe um cinema brasileiro. Eu vejo alguns outros queridos desses fazedores de histórias, contadores de histórias com a câmera na mão. Eu espero ter mencionado todos os que estão na mesa. Sim, Joênia, eu acho que eu cheguei até perto de onde você está, né? Cumprimentei os que estão aqui. Eu devo cumprimentar também os meus caríssimos confrades. Para esse nosso gênero, eu vou usar essa palavra, confrade. Então, aos confrades que estão aqui laureando essa paisagem, nós todos com essa roupa distinta, que eu estou estreando, eu quero cumprimentar as senhoras de todos os nossos confrades que estão aqui fazendo esse jardim de gente humana. Obrigado. Bem, lá vem o desafio.
Eu fui apoiado, sem nenhum limite de paciência comigo, pelo meu querido amigo Rogério Farias, acolheu lá na Academia Mineira de Letras e que, de alguma maneira, inventou de ajudar no trânsito entre as montanhas mineiras e o litoral do Rio de Janeiro, para fazer esse trânsito. Eu agradeço a disposição dele, a doação, de me apresentar, de certa maneira, a esse rito da Academia Mineira de Letras e a esse rito da Academia Brasileira de Letras, que é como se você estivesse sendo graduado em algum termo. Há uma exigência de um pouco mais, digamos assim, de atenção ao rigor do protocolo. O Acadêmico Antônio Carlos Secchin me falou que o rito é tudo. Eu acho que ele estava me lembrando que o rito é uma das maneiras de a gente instituir mundos. A ideia de ordem e de caos ela deve estar muito relacionada com a nossa capacidade de produzir sentidos, e a produção de sentidos é um rito, é uma reza, é uma oração, é uma procissão, como diz o querido Acadêmico Gilberto Gil, Mestre Gil, é essa ritualização da vida, que nos dá potência para ir além da nossa rotina de reproduzir cotidianos, produzir isso que nós precisamos para nos abrigar, para comer e para se proteger minimamente. Isso aí todos nós, animais humanos, somos capazes de fazer. Mas o rito nos saca desse lugar, que a gente podia chamar desse lugar comum, e nos põe num lugar de criação; criação de mundos, seja através da tecnologia, seja através de qualquer outro exercício de expansão das nossas capacidades.
Eu ia falar subjetividade, mas é a expansão da nossa capacidade de traduzir subjetividade, de transformar a poesia em matéria, de transformar ideias em substâncias que possam nos carregar, nos alimentar e nos inspirar. Então o rito provavelmente outros queridos companheiros de viagem vão poder me ajudar nesse entendimento do ritual e do rito como importantes exercícios de convivência, de comunhão e de constituir comunidades humanas, e que se essas comunidades prosperarem, elas podem constituir também sociedades. Sociedades com capacidade sensível de se governar, de cuidar uns dos outros, não exatamente de mandar uns nos outros ou de predar uns aos outros, que é uma vocação muito primária dos sapiens.
O sapiens tem uma vocação animada para predação. O escritor Yuval Harari, na sua história Sapiens: Uma breve história da humanidade, do sapiens, ele sugere que essa espécie da qual a gente deriva tem uma vocação enorme para predar os ecossistemas e os espaços onde ele vive. O ecossistema mais frágil que esse sapiens habita é a comunidade, é a sociedade que ele está inserido, de onde ele nasce, de onde ele surge. E se nós não sabemos experimentar resiliência, devolver cura, devolver amabilidade, ajudar a reconstituir o tecido comunitário, nós estamos cooperando com a prática da predação. A gente quer ter vantagem, a gente quer ganhar tempo, a gente quer ganhar alguma coisa. E como a querida Heloísa mencionou aqui, a gente fica feliz com o mérito. E a gente pode até achar que meritocracia é uma meta que alguém vai perseguir, desde o banco da escola até a sua formação como pessoa, algum mérito. Eu achei muito bom a menção a essa cultura que supõe que algumas pessoas têm mérito, os outros não! como uma das ideias motoras da predação.
A gente só pode justificar socialmente a vantagem e o mérito se a gente tem uma certa tendência para o sapiens predador. Ele não é propriamente um dinossauro, Esse sapiens predador, ou predatoros, predatório, esse sapiens, ele é um sujeito simpático, é gentil, ele anda por aí, vai na praia, gosta de sorvete, até açaí, um açaí com granola, mas não dá para despistar sua vocação predatória. E ele, contribui para que a gente experimente tempos nas nossas comunidades humanas, em sociedades complexas como a brasileira, Porque, definitivamente, nós somos uma sociedade complexa. Se fizer uma fotografia desse salão com essa presença plural, uma amostra da nossa complexidade como povos que vieram colonizar o continente americano, a gente deve representar muito mais diversidade do que uma reunião no Congresso dos Estados Unidos, por exemplo. Eu estou fazendo a comparação lógica. Você não encontra tanta diversidade, tanta variedade, tanta pluralidade de raça, origem, gênero, todas essas complexidades que nos constituem.
Você não encontra isso em todos os lugares do mundo. Aliás, tem lugar que você entra, ou só tem gente branca ou só tem gente preta. Em alguns países, o trânsito de um e o outro na biosfera dominada por um desses, é totalmente desastrosa. Um negro pode se surpreender com uma viatura parando e uma abordagem totalmente brutal se ele estiver andando numa rua branca. Mas um branco também pode ser surpreendido por uma abordagem totalmente violenta, se ele estiver circulando por uma periferia onde aquela comunidade já é tão recalcada pela violência que ela identifica nessa pessoa de pele branca o agente invasor. Eu acho que foi isso que fez o Cunhambebe chamar os parentes dele para tentar mandar de volta para a Europa aqueles branquelas que estavam chegando aqui. E o professor Darcy Ribeiro, que tinha muita coragem de contrariar o coro dos contentes, Darcy Ribeiro disse, “Eu não sei como que aqueles indígenas tão saudáveis e fortes não viraram aquelas canoas que tinham uns trinta e poucos caras com escorbuto, fracos e doentes, e não afogou eles logo na praia.” O Darcy, naquele jeito de criança dele, ele supunha que se a gente tivesse virado aquela canoa, nunca teria voltado a aparecer ninguém por aqui. É o pensamento mágico do Darcy. Eu imagino a sucessão de canoas que iam vir depois para cá, querendo saber quem é que afogou o meu parente, o meu primo?. E essas abordagens de lá da Europa e daqui desse continente, ela trouxe, ao longo dessa jornada, a língua portuguesa que aportou aqui, prosperou aqui e quase que tomou conta de tudo. De norte a sul, muitos estrangeiros ficam incomodados, ficam admirados que a gente tem uma língua brasileira que deriva do português e que chegou no Amapá, que chegou nas aldeias Wapishana, do povo da nossa querida Joênia, e chegou também do povo Yanomami, sim, em Roraima. Mas eu também mencionei o Amapá porque eu sei que o português chegou até aquelas beiradas, aquelas bordas do território brasileiro já com as Guianas, com aqueles nossos vizinhos do lado de lá.
O português se espalhou por essa terra como uma planta, como esses bordados da nossa roupa, uma planta totalmente adaptada e criou variedades também de português. Um gaúcho não fala português da terra do Fabiano Piúba, lá no Ceará. Falou um outro português. Voltando ao rito.
Segundo a tradição, é importante que o novo Acadêmico trace, ainda que brevemente, a história de sua Cadeira. É o que farei, invocando um verso do talvez mais belo poema indigenista da literatura brasileira, Ijuca Pirama, de Gonçalves Dias. No conto sétimo do poema, afirma um personagem: “em tudo o rito se cumpra.” Quem disse isso foi um velho ancião, Tupi. A mim, portanto, cabe seguir essa recomendação. Vocês podem imaginar de quem é a recomendação de voltar ao rito. Eu queria compartilhar com os nossos queridos, principalmente com os meus parentes, que estão alegrando essa audiência, que vieram de várias regiões do nosso país e que já foram saudados aqui. Eu não vou mencionar o nome de cada um, as suas etnias, mas eu posso dizer que nós temos aqui uma significativa presença de povos indígenas de quatro ou cinco regiões do nosso país, o que significa uma importante fricção linguística entre o português da Academia, o brasileiro português do nosso país todo, aquele que permite que uma novela como “A escrava Isaura” seja adorada na China, seja repetido em Portugal e faz com que, em Cuba, mais que em Portugal, cria uma espécie de recolonização ou contracolonização quando você vê um português tentando falar feito um personagem daquela novela, porque ele acha que é assim que se fala no Brasil. Da mesma maneira que nós somos suscetíveis a uma reeducação ou educação pela língua, os outros povos também se admiram e aprendem com as nossas práticas de linguagem, de idioma, de língua. Desde que me convidaram ou que me animaram a me mover até essa cadeira número 5, eu me perguntava, será que nessa cadeira cabe, como dizia o poeta Mário de Andrade que disse “Eu sou 300” Eu já vi muita gente confundindo o Mário e o Oswald, então eu não fico assim muito envergonhado. Então o Mário teria dito, eu sou 300. Olha que pretensão.
Eu não sou mais do que um, mas eu posso invocar uns 300. Nesse caso, 305 povos que nos últimos 30 anos do nosso país, passaram a ter a disposição de dizer, estou aqui! Sou Guarani, sou Xavante, sou Caiapó, sou Yanomami e sou Terena.
E esse jogral, essa fala plural, ela só foi possível porque nós atravessamos uma linha vermelha que indicava, no final dos anos da ditadura, a disposição do Estado Brasileiro de emancipar os indígenas. E houve, inclusive, um projeto muito bem estruturado, que era o projeto de emancipação indígena. No final do governo Figueiredo transitou ali o Geisel e o Figueiredo e o projeto ele tinha consistência porque ele vinha desde a Fundação da República, que daí eu já vou começar a entrar na matéria do querido antecessor na cadeira número 5, que é o Acadêmico José Murilo de Carvalho, que ao virar a República, ao escanear a República, ele viu a vocação republicana de origem inspirada na ideia do positivismo, de que os indígenas iam evoluir para brasileiros.
Um dia aquela gente ia evoluir e ia virar brasileiro!!. Quer dizer, é mais ou menos como você querer produzir, sei lá, você quer produzir coalhada em casa. Aí você arruma aqueles lactobacilos, põe numa tigela, põe leite, deixa dormir e aquilo vira coalhada. Os positivistas geniais achavam que a gente ia virar coalhada. A forte determinação daquela república atribuiu a um jovem oficial chamado Cândido Mariano Rondon. O Marechal Rondon porque ninguém fica cândido o tempo inteiro. E ele chegou a Marechal estendendo linhas de telégrafos pelo continente, pelas fronteiras todas, e também conquistando terras indígenas através do serviço de proteção aos índios e localização de trabalhadores nacionais. Olha o título da coisa. Era um super ministério com o nome de serviço de proteção aos índios e localização de trabalhadores nacionais. O querido José Murilo, ele foi esmiuçar esse propósito republicano de deglutir os índios. Quer dizer, quem ia devorar os indígenas seria a república. Não aquela história de sardinha, dos caetés e tudo. Eu soube que tem até algum dos meus caros confrade que são descendentes de um querido poeta Ledo Ivo,
e que reivindica a genealogia de ter comido o Bispo Sardinha, os parentes dele, Caeté.
Tudo isso, gente, vem de uma literatura riquíssima, que é a literatura brasileira, que tem as suas fases lá no romantismo e antes do romantismo, e chega no modernismo e chega até nós, onde a própria ideia da literatura se transfigura e admite que a tradição que nós compartilhamos com os povos da diáspora, aqueles que vieram trazidos para cá para formar mão de obra aqui. Essa gente da diáspora, que são os povos de origem africana, que constituíram os afro-brasileiros e que são aqueles que têm na oralidade, uma tradição tão reverenciada que existe um status de alguém que conta história, que é o griot.
O que é um griot? Nós sabemos muito bem o que é um erudito. Nós sabemos muito bem o que é um Acadêmico, um historiador, como foi José Murilo de Carvalho.
Mas e um griot? O que é um griot? Em algumas sociedades muito anterior a essa formação nossa, o griot é uma biblioteca de conhecimento que se move e que tem passagem livre de um território ou outro, porque todos reconhecem nele uma qualidade de narrador de mundo. Talvez o Mia Couto ou o José Eduardo Agualusa uma hora conte uma história para a gente sobre o que eles aprendem com os griots para escrever livros tão incríveis.
Todo mundo que escreve livros incríveis escutou a história de alguém que não escreve livro. Parece aquela história de que todo ovo tem um vovo. Então, a literatura que nós passamos a apreciar nos últimos três, quatro mil anos, deve ter pelo menos uns outros 10, 20 mil anos em que ninguém escrevia nada, só contava história. Me referir a oralidade como o oceano da oralidade é mais do que uma expressão poética, é reconhecer que nós somos herdeiros de tempos imemoriais, onde quase tudo que a gente sabe sobre nós, os humanos, e a Terra, vem desses registros. Registro muito antigo, 6 mil, 8 mil anos.
E é tão bom a gente poder nos espraiar no tempo dessa maneira, pensar em 2 mil anos, 6 mil anos, 8 mil anos, que nós ficamos folgados, sem pressa. Sem ansiedade.
Evita que eu chegue aqui pra vocês e fale, ah, me desculpe porque eu estou tomando o tempo de vocês. Que seria uma pretensão. Incabível. É impossível tomar o tempo do outro. É impossível. Eu disse que eu ia seguir o rito. Antes, porém, de seguir esse roteiro, mesmo fugindo do protocolo de me limitar aos antecessores da Cadeira que, ora, estou acessando, eu não posso deixar de registrar minha admiração por acadêmicos de outras cadeiras. Interessante, gente. Vocês já perceberam que nesse universo a Cadeira é uma entidade? Eu estou chamando a atenção porque vocês podem achar que uma cadeira é como uma canoa ou como um banco, nesse caso aqui, não. A cadeira é uma entidade.
Uma entidade que carrega histórias de décadas e de séculos, algumas das histórias que se referem a uma cadeira dessa, ela pode recuar ao século XVIII, XVII. No caso da Cadeira número 5, nós vamos recuar ao século XIX, com alguns pequenos reflexos do século XVIII. Reflexos que incidiam sobre o comportamento, o modo de se organizar socialmente e uma terrível sociedade escravocrata, que achava que podia escravizar outros seres humanos. E no meio daquilo tinha literatura. O fundador da Cadeira, Raimundo Correia. Os ocupantes da Cadeira, Oswaldo Cruz, Aloysio de Castro.
Cândido Mota Filho e lá ao longo do caminho, uma senhora, Rachel de Queiroz.
Entre os fundadores, das outras Cadeiras, não dessa, a cadeira 5. Um dos fundadores, um dos outros fundadores, e nesse caso aqui é o fundador dessa casa, Machado de Assis, que como poeta valorizou sob muitos ângulos, assim como seus contemporâneos, a diversidade das culturas dos povos indígenas. É bom a gente lembrar disso, porque fica parecendo que nós é que somos as pessoas modernas, que somos capazes de olhar ao nosso redor e dizer, olha, aqui tem gente indígena, e aqui também tem gente negra que veio da África, e aqui tem gente árabe, aqui tem gente de diferentes continentes formando esse Brasil? Não. No século XIX, quem nos antecedeu já tinha compreensão e uma visão muito mais sensível sobre essa nossa complexa formação. Eu já mencionei aqui o romance Escrava Isaura, e ele dá bem uma ideia do que era capaz de alguém projetar de lá do século XIX, numa sociedade ainda escravocrata, antes da princesa Isabel ser convocada a assinar qualquer livro do tamanho daquele ali, ela deve ter assinado um livro grandão para configurar a situação que veio abolir a escravatura no nosso país.
Abolir a escravatura não é abolir a escravidão. Quem dera fosse. Se abolir a escravatura fosse abolir a escravidão, nós estaríamos vivendo numa sociedade com menos desigualdade e brutalidade no tratamento com as nossas diferenças do que nós vivemos hoje. E a gente não ia se impressionar tanto em celebrar uma sessão da Comissão da Verdade ou da Comissão da Anistia vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos, apreciando uma determinação da Comissão da Verdade, onde o Brasil é demandado a pedir perdão por ter tentado matar o povo indígena através dos seus instrumentos republicanos, suas milícias, suas polícias, seus exércitos, suas forças armadas, que não deixou ninguém de fora. Todo mundo participou dessa espécie de pesadelo em que os indígenas eram considerados um risco e que tinham que passar por campos de reeducação.
A terra indígena Krenak, ela foi um reformatório nos moldes do que a gente imagina ter acontecido em países de governos totalitários, onde parte da comunidade que formava aquela nação, era separada para ser reeducada, para poder voltar a convívio.
Quer dizer, os totalitarismos em qualquer lugar do mundo, eles têm um defeito grave, eles não conseguem expressar a intenção que dá origem a essas práticas. E pedir perdão depois significa muito pouco no sentido da reparação, a real reparação, a reparação verdadeira que se deve a povos que foram humilhados. O pedido de perdão é um gesto civil, é um gesto cordial, até o Papa Francisco ia dizer que é um gesto cristão, mas é o Papa Francisco. Agora, um Estado que é uma instituição total, eu não consigo imaginar um Estado pedindo perdão. Não dá. O Estado não tem como pedir perdão. O Estado é um ente que não pede perdão. É por isso que toda a teoria sobre política diz que o Estado é a única coisa que pode matar a hora que quiser, fazer guerra a hora que quiser.
Quer dizer, não adianta um dia um Estado europeu pedir desculpa para as Américas. É gentil, é simpático, mas não acrescenta nada. Então, pedidos de desculpas não vão fazer nascer de novo as palmeiras. “Minha terra tem palmeiras onde canto sabiá”, Gonçalves Dias. Que herança maravilhosa alguém poder dizer “Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá.” É uma herança tão maravilhosa, é como evocar uma ideia de um jardim terreno, onde os humanos podiam viver numa boa, sem pânico. E eu recebi uma ajuda maravilhosa, indispensável, para celebrar aqui aquela literatura que já mencionei, que também foi feita por Machado de Assis, resgatando dignamente o sentido de ancestralidade dos nossos povos, do nosso território, como se território e povo se constituíssem numa mesma potência. O querido Eduardo Viveiros de Castro, ele fez um prefácio para um livro onde ele diz que a principal infraestrutura de uma nação é o seu território. Eu achei isso maravilhoso, porque é como se eu tivesse encontrado uma expressão que cabia feito uma bandana na minha cabeça. A principal infraestrutura de um país, de uma nação, é o território. É isso que a gente chama de natureza. Se você preda a natureza, se você destrói o território, não tem sentido você ficar reclamando de infraestrutura. E como aqui tem economistas também, a gente pode, no futuro, conferir a ideia de que a primeira infraestrutura que uma nação, um povo precisa perseverar nela é a própria bacia dos rios, da floresta, das montanhas. Sem os rios, as florestas, as montanhas que produzem vida, não adianta você inventar infraestrutura. A menos que a gente acredita que é possível produzir tudo o que nós precisamos numa estufa. Estufa que pode se tornar, na verdade, toda a biosfera do planeta se a gente continuar aquecendo.
Se a gente continuar esquentando, como temos esquentado, a gente pode transformar toda a biosfera do planeta Terra numa imensa estufa. Vamos ao meu querido José Murilo de Carvalho, se eu tiver deixado a menção a alguns dos nossos ocupantes de outras cadeiras, que não essa cadeira 5, que eu herdo dessa constelação de grandes vultos que me antecederam, mencionei já o fundador Raimundo Corrêa, sucedido depois por Aloísio de Castro, Cândido Mota Filho, Raquel de Queiroz e José Murilo de Carvalho. Estava me lembrando que eu estava deixando de fora importantes contribuições dadas por ocupantes de outras cadeiras que não essa. E aqui é mencionado a presença luminosa de Affonso Arinos, Darcy Ribeiro, de Roquette Pinto, e também é mencionado aqui aqueles autores que sempre evocaram a presença indígena na formação do nosso pensamento, da nossa cultura e do nosso povo. Celebra também o cinema, lembrando Nelson Pereira dos Santos, cita a obra dele, como era gostoso o meu francês, lá dos anos 70, mais precisamente de 1971. Lembro de Antônio Callado com Kwarup, de 1967, e também o meu querido que está aqui bem pertinho de mim, que deixou já registrado mais uma apreciação desse universo ameríndio com o seu Meu querido canibal, já no século XXI, o Acadêmico Antônio Torres. Vamos ao Bernardo Guimarães? Um nome de maior importância registrado no período que é estudado como aquele da Formação da literatura brasileira, identificado como Romantismo. O Bernardo Guimarães, ele nasceu em ouro preto.
Eu sei que muita gente vai ficar com inveja por isso. Mas ele nasceu em ouro preto.
E no ano próximo, iremos celebrar 200 anos do nascimento desse contista, romancista, ensaísta, pensador de coragem para produzir um tipo de literatura que, à sua época, era muito avançada. Ele estava convivendo com donos de terra e donos de escravos, mas ele inventou uma personagem que eu já mencionei aqui, essa Isaura, que vai abalar a narrativa na virada do século XIX para o século XX e vai se constituir numa literatura que concorre numa boa com a ideia de literatura moderna, quer dizer, o pessoal da semana de 22 deve ter falado de onde esse sujeito tirou essas ideias? Ele não estava esperando o modernismo, ele já estava fazendo isso e tem alguns críticos que até consideram que, na verdade, ele já avançava no território do realismo fantástico. Acho que foi por isso que eu gostei dele.
E eu não vou citar as obras além dessa que até hoje é celebrada e circula em várias versões da Escrava Isaura. Mas ele tem uma produção extensa. Ele deixou novelas deixou contos reunidos em histórias e tradições da província de Minas Gerais, que você vai conhecer o dilema daquela gente que fugiu das senzalas e das fazendas e foi fundar Quilombos.
Ele vai esmiuçar a vida dos Quilombos e mostrar a tragédia social, que foi para aqueles povos escravizados aqui, que conseguiram escapar a condição de escravos, criar uma situação de aldeamento e de liberdade, e que eram apresados a qualquer momento por qualquer sujeito que se achasse corajoso para isso. Então, são histórias bem cheias de aventura, histórias boas para fazer filme. O fundador dessa Cadeira, Raimundo Correia, veja gente, onde, que época que ele circulou. Ele nasceu em 1859, no navio, andando, nas costas do Maranhão. Ele nasceu em 1859, viveu até 1911, também feito cigano, andando de navio e foi falecer em Paris. E aqui eu fico sabendo que isso aconteceu 9 anos depois a Academia Brasileira de Letras, fez o pedido de repatriação para o Brasil dos restos desse imortal. Olha, eu fiquei prestando atenção nisso e comecei a tomar conhecimento da condição que é você ser um imortal. Você pode ser eventualmente requerido de volta, mesmo que você esteja parado em algum outro campo sagrado, você vai ser requisitado.
É uma coisa séria. Eu já assinei o livro. A Cadeira que assumo, ela teve a presença, ela teve a assinatura desses que me antecederam de uma maneira tão brilhante que eu busco refúgio no fato de essa Academia ter demorado bastante para admitir Rachel de Queiroz.
E eu falei, ah, que coisa boa! Eu tenho a alegria de ter vivido até agora com uma ampla proteção dos seres femininos. Começando pelas minhas avós, minha mãe, minhas irmãs, minhas companheiras, mães dos meus filhos, minhas filhas, minhas netas. E essa proteção do mundo feminino na minha vida, eu acho que ela me tornou uma pessoa melhor.
E aí, toda vez que eu encontro lugares onde as mulheres já colonizam, eu me sinto muito mais à vontade. Gratidão a todas essas senhoras, mães, avós, irmãs, filhas, netas. É maravilhoso e que estejam em maioria aqui, uma maioria gentil, que pode tornar o mundo muito mais interessante.
Eu tinha pensado, em estender um pouco mais aquelas relações da República com a obra de José Murilo de Carvalho, porque ele diz que o positivismo, aquele que proporcionou as condições para que o Rondon e os outros colegas militares dele formassem um verdadeiro exército de bravos brasileiros, positivistas, que queriam pacificar os povos indígenas e no caminho da pacificação dos indígenas ele teria forjado uma expressão que é assim de romance. Aquela frase que atribuem a Rondon, que ele disse para os trabalhadores quando estavam avançando para cima de Rondônia, entrando mesmo naquilo que a gente poderia considerar que era o Brasil selvagem, ele alertou os mateiros dele, dizendo: “Morrer se preciso for, matar nunca.” Os indigenistas, nossos contemporâneos, trabalhadores lá da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, onde está a Joênia, eles têm esse lema do Rondon como uma espécie de insígnia: Morrer se preciso for, matar nunca. E é muito interessante porque o Rondon juntou aquela vocação militar dele para uma outra sensibilidade, que era o de entender que aqueles povos com quem ele estava confrontando, ele não podia tratar aquela gente no mesmo gradiente que ele tratava os seus compatriotas, que ele estava lidando com gente que era de outra cosmovisão, outra cultura, outra percepção de mundo. Então, eu não tenho nenhuma dificuldade de saudar o Rondon como um desses sujeitos que poderiam estar me antecedendo nessa Cadeira número 5.
E eu já estou inventando um tipo de homenagem extra, que é homenagear quem nem passou aqui. Mas é muito interessante porque faz justiça a alguns de nós que, ao longo da história, procurou contribuir da melhor maneira possível para que a gente se tornasse uma nação gentil, como diz a canção de Milton Nascimento que diz que era uma nação com uma poética de existir, onde, a despeito da nossa diferença, nós fôssemos capazes de construir relações de cooperação para além da tolerância.
E muitas vezes nós reclamamos que a tolerância é uma virtude que a gente deveria desenvolver. Mas a tolerância é o que o mundo faz, porque a tolerância nos permite virar o rosto enquanto Israel bombardeia a Palestina. É tolerância é isso. Pensando no Rondon, me vem a compreensão de que a tentativa de integrar os povos indígenas no período pré-constituinte ele era um projeto positivista. Então, você não mata essa gente, mas você mantém essa gente sob controle e, se possível, usa os recursos da aculturação, da domesticação, até que eles se tornem uma espécie de aculturados exóticos, como disse um militar constrangendo Mário Juruna no congresso em Brasília. Juruna fez um discurso, fez referência a um Ministro, um dos Ministros militares disse, Juruna é um aculturado exótico. Eu gostei da frase, mas ela não diz nada. O que é um aculturado exótico? Será que somos todos nós os brasileiros? Por que não? Quando você tem na botânica, você se refere a uma variedade, a uma espécie exótica, é porque ela é de outro lugar. E a pergunta é quem não é de outro lugar aqui? Tá bom? A começar pelo modo de organização da nossa sociedade que é europeia. A república essa que o nosso querido José Murilo de Carvalho desnuda, ele mostra que as três primeiras décadas ela viveu executando um roteiro que Dom Pedro II e os seus conselheiros deixaram para aqueles Generais e Marechais que ficaram aqui, dando continuidade à administração dessa colônia. Então nós, como colônia europeia, fomos governados até Getúlio Vargas decidir dar um golpe. Sobrevivemos a 30 anos de Getúlio Vargas. Entramos pelo cano por mais 21 anos, atravessamos uma longa noite de horror e chegamos ao século XXI meio cansados de guerra.
Os povos indígenas acompanharam toda essa história brasileira, mesmo para aqueles que pensam que nós nunca entendemos direito o que os brancos estão falando. Eu espero ter honrado aqueles que me antecederam, aqueles que contribuíram para que essa Casa pudesse seguir honrando a sua fundação com o Machado de Assis, como o notável médico-sanitarista Oswaldo Cruz, que sucedeu o Raimundo Correia, esse que a gente atribui a ele a fundação da Cadeira. Nessa Academia, autores, médicos, não é novidade, escritores, autores, médicos, não é novidade. E eles trouxeram uma contribuição desde aquela do cientista Osvaldo Cruz até a do nosso Confrade, que nos anima com a sua presença entre nós aqui, o querido Paulo Niemeyer. Essa cadeira 5, em uma instituição que recebe uma pessoa indígena, que acessa esse lugar quando a casa completa 126 anos de existência, acolheu também, como já mencionei, a primeira mulher somente em 1977. Foi a primeira ocupante nascida no século XX, em 1910, tendo chegado ao século XXI, pois faleceu em 2003. Suas obras, sua obra, inaugurada com o XV, em 1930, é a obra pioneira do regionalismo nordestino. Ao lado de A bagaceira, de José Américo de Almeida. Ficcionista, cronista, dramaturga, foi a primeira escritora brasileira a ganhar o prêmio máximo de literatura em língua portuguesa, o prêmio Camões, em 1993. E chego agora a essa Celebração da presença de José Murilo de Carvalho nessa Academia a quem tenho a honra de suceder ocupando a cadeira número 5. Eu não quero contar mais história para vocês hoje à noite. Gratidão.