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ABL na mídia - O Globo - Ailton Krenak toma posse em noite histórica na ABL: 'Eu não sou mais do que 1, mas posso invocar os 305 povos indígenas'

 

A posse do filósofo Ailton Krenak na Academia Brasileira de Letras, na noite de sexta-feira (5), foi diferente de tudo que já se viu antes na Casa de Machado de Assis. E não podia ser diferente em se tratando do primeiro indígena a ingressar no quadro da instituição desde sua fundação, em 1897. Krenak fugiu do padrão ao improvisar boa parte do seu discurso de posse e usar uma bandana indígena junto com o fardão. Com um discurso inventivo, driblou os protocolos, chamou a cadeira de "entidade" e arrancou aplausos da plateia, enquanto abordou frontalmente questões como direitos dos povos originários, dos afrodescendentes e das mulheres.

A cerimônia, que ocorreu no Petit Trianon da ABL, contou com a presença de autoridades como a ministra da Cultura, Margareth Menezes, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, a presidente da Funai, Joênia Wapichana, e o representante do ministério dos Povos Indígenas, Eloy Terena. Também estavam presentes o DJ Alok e o compositor Lenine.

Antes do início da cerimônia, um canto guajajara foi entoado do lado de fora do Salão Nobre do Petit Trianon. Em seguida, Ailton Krenak foi recepcionado pela ensaísta e crítica literária Heloisa Teixeira, ocupante da cadeira 30 da ABL, que iniciou sua fala mostrando um vídeo com a participação de Krenak na Assembleia Constituinte, em 1987, imagens seguidas de aplausos entusiasmados dos presentes.

Teixeira destacou a importância do novo imortal para a casa:

- Não há como não começar esse discurso registrando que, nesse minuto, nessa sala, estamos vivendo um momento histórico - iniciou a acadêmica. - Um dos maiores líderes dos povos originários do Brasil, pede para entrar na Casa de Machado de Assis, que o recebe de braços e portas abertas.

Teixeira explicou que, junto com Krenak, entram na academia um "universo de territórios, pensamentos e cosmologias indígenas":

- Por exemplo, Ailton nos traz consigo, nesse momento, cerca de 180 línguas para a ABL, cuja missão, até hoje pelo menos , é a preservação e desenvolvimento de uma única língua: a portuguesa.

A atriz Fernanda Montenegro, que colocou em Krenak o colar de imortal, quebrou o protocolo abraçando longamente o amigo e pedindo aplausos aos presentes, enquanto dizia "Viva o Brasil". A entrega da espada foi feita pelo acadêmico Arnaldo Niskier. O diploma foi entregue por Antonio Carlos Secchin, imediatamente aberto por Krenak que o mostrou para a plateia.

Discurso de posse

Convidado ao púlpito, Krenak ajustou os microfones lentamente antes de iniciar seu discurso, feito de improviso, tomou uma pausa silenciosa e iniciou cumprimentando os integrantes da mesa e os imortais, lembrando que as mulheres presentes, como ele, "estavam trilhando com o mesmo estranhando esse lugar que estou agora".

- Não é uma questão de gênero, é uma questão de perceber o mundo de maneira diversa - afirmou.

O novo imortal então usou a ideia do rito, como é uma posse na ABL, para falar sobre convivência, comunhão e a constituição de comunidades humanas.

- O rito é uma das maneiras de a gente instituir mundos. A ideia de ordem e de caos deve estar muito relacionada com a nossa capacidade de produzir sentidos, e a produção de sentidos é um rito, uma reza, uma oração. É uma procissão como diz o querido Gilberto Gil, mestre Gil. É essa ritualização da vida que nos dá potência para ir além da nossa rotina de reproduzir cotidianos - afirmou Krenak. - O rito nos saca desse lugar-comum e nos põe num lugar de criação de mundos.

Ao lembrar que, segundo os ritos da ABL, deveria evocar seus antecessores na cadeira número 5, Ailton Krenak, recorreu ao poema "Eu sou 300", de Mario de Andrade:

- Eu não sou mais do quem um, mas eu posso invocar os 300. Nesse caso, os 305 povos que nos últimos 30 anos do nosso país passaram a ter a disposição de dizer "estou aqui". Sou guarani, xavante, caiapó, ianomâmi, terena... Esse jogral só foi possível porque atravessamos uma linha vermelha que indicava a disposição do Estado brasileiro de emancipar os indígenas - afirmou Krenak, lembrando que seu antecessor, o historiador José Murillo de Carvalho, esmiuçou o projeto estruturado no final do governo Figueiredo. - O projeto republicano de devorar os indígenas.

Krenak usou seu discurso para dar alguns recados políticos. Afirmou que o pedido de perdão feito pela Comissão da Anistia aos povos originários esta semana "não muda nada", lamentou a demora da ABL em admitir a primeira mulher em seus quadros (Raquel de Queiroz, em 1977), e afirmou que a tentativa de integrar os povos indígenas no período anterior à Constituição de 1988 era um projeto positivista que planejava mantê-los sob controle.

- Esse projeto usou o recurso da aculturação, da domesticação, pensando em tornar os povos originários em uma espécie de aculturados exóticos, como disse um militar tentando constranger Mario Juruna no Congresso, em Brasília.

Ao se despedir, Krenak afirmou que "chegamos ao século 21 meio cansados de guerra"

- Os povos indígenas acompanharam toda a História Brasileira, mesmo para aqueles que pensam que nós nunca entendemos direito o que os brancos estão falando - disse ele, que encerrou o discurso de posse à sua maneira. - Eu não quero contar mais histórias pra você hoje à noite. Gratidão.

Boas-vindas ao novo imortal

Presente na posse, o compositor e imortal Gilberto Gil ressaltou as possibilidades que a chegada de Krenak abre para a ABL:

- Ele é um produtor voluptuoso em termos de pensamento, reflexão e discurso ainda pode trazer muito dos elementos com os quais ele trabalha para a Academia - disse

Lenine afirmou que a ABL viveu uma noite histórica pelo "reconhecimento de um grande pensador contemporâneo brasileiro"

- Não por acaso teve a comissão de anistia ainda ontem pedindo perdão pelo que fizemos, pelo que já perdemos, dos povos originários. É muito significativo um dia como hoje. Estou aqui feliz e honrado - contou.

No menu, o 'pão da terra'

O menu da posse de Ailton Krenak na ABL trouxe iguarias até então inéditas na história da ABL. Produzido pelo grupo Terra Come, que veio de Belo Horizonte para homenagear Krenak, o cardápio da noite incluiu comidas indígenas como uma batata doce roxa envolta numa camada de argila, assada no forno para ser quebrada com martelo e comida com as mãos.

- Batata doce é um presente da terra, é chamada o pão da terra - explica Silvia Herval, do Terra Come. - Na argila, está carimbada a palavra KRENAK. O Kre significa "cabeça" e o Nak, terra. Então quebramos a palavra antes de comer o pão da terra.

Os convidados degustaram uma sopa com bases indígenas – água de bica, mandioca, banana da terra, banana verde, cogumelos shitake criados no tronco. Elas foram servidas em cumbucas de argila, forradas com folha de taioba. Em uma proposta ecológica, os convidados eram incentivados a jogar fora as cumbucas em uma bacia de água, para que derretessem e "voltassem para a terra".

Quem é Ailton Krenak

Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora, ele ocupa a cadeira 24 da Academia Mineira de Letras. Nascido no vale do rio Doce, uma região afetada pela atividade de extração mineira, mudou-se para o Paraná aos 17 anos, onde se alfabetizou. Ele participou da fundação da União Nacional dos Indígenas (UNI), o primeiro movimento indígena de expressão nacional. Sua eleição para a ABL acontece no aniversário de 35 anos da promulgação da Constituição de 1988, na qual atuou para a aprovação da emenda constitucional que trata dos direitos dos povos originários. Em 1987, ele comoveu o país com um discurso na Assembleia Nacional Constituinte, em que pintou o rosto com a tinta preta de jenipapo em protesto ao retrocesso dos direitos indígenas.

O sucesso de seus livros mais recentes, como "A vida não é útil" e “Ideias para adiar o fim do mundo”, ambos publicados pela Companhia das Letras, difundiu o pensamento ameríndio para o grande público, propondo novos modos de vida e maneiras de se relacionar com o meio ambiente. Krenak critica o que ele chama de "humanidade zumbi", uma ideia de progresso que deslocou os homens do corpo da terra e nos levou o consumo desenfreado e à destruição da natureza.

Krenak já pensa em projetos para desenvolver na academia. O novo imortal vai sugerir à instituição a criação de uma plataforma colaborativa sobre estudos a respeito das línguas nativas no Brasil. Seria uma forma de ampliar o acesso de quem está mais distante dos grandes centros urbanos, caso de populações indígenas.

Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/04/05/ailton-krenak-toma-posse-em-noite-historica-na-abl-eu-nao-sou-mais-do-que-1-mas-posso-invocar-os-305-povos-indigenas.ghtml

06/04/2024