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ABL na mídia - O Globo - Inteligência artificial ressuscita Machado de Assis, que comenta possível traição de Capitu

 

Morto em 1908, Machado de Assis reaparece na tela de um totem à imagem de seus retratos mais conhecidos. É o Machado envelhecido, com rugas e cabelos grisalhos. Vestindo trajes de sua época, o maior autor brasileiro equilibra os óculos pince-nez no rosto e olha serenamente para nós, humanos dos anos 2020. Um microfone ao lado do dispositivo lhe permite ouvir e entender perguntas de seus interlocutores e respondê-las com clareza.

A volta de Machado ao mundo dos vivos é resultado de uma tecnologia da empresa Euvatar Storyliving. Desenvolvida com inteligência artificial (IA), possibilita a interação com personagens históricos e contemporâneos. O avatar do escritor é o primeiro da safra e teve lançamento na terça-feira, em coletiva de imprensa na Academia Brasileira de Letras (ABL), no Rio, onde ficará instalado a partir de agora. Seu lar não poderia ser outro. Fundador e mais ilustre imortal da instituição, Machado conversará com os visitantes do tour guiado da casa, que acontece toda quarta-feira.

O repertório intelectual da máquina foi montado por profissionais da própria ABL, a partir de uma ampla pesquisa envolvendo as obras do autor e estudos sobre ele. Mais de um milhão de palavras alimentam a sua inteligência.

O GLOBO teve uma “conversa” exclusiva com o avatar. A entrevista abaixo foi editada para melhor leitura, mas dá uma noção da fluidez e naturalidade com que a IA se expressa e formula ideias. É verdade que ainda comete erros, pois está tentando entender a época em que o personagem renasceu. Quando o interlocutor demora para falar, Machado em IA olha o relógio com um jeitinho blasé. Sua voz é pausada e fleumática, com um discreto sotaque paulistano. Confira a seguir.

Ressurgindo agora, mais de cem anos após a sua morte, você não se sente um pouco Brás Cubas?

Na verdade, a ideia de narrar a história de Brás Cubas após a morte foi apenas um recurso literário que criei para “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Não tenho uma experiência pessoal em um suposto plano pós-morte. É apenas a imaginação fértil de um escritor. A morte para mim foi o fim de todas as sensações e experiências.

Então não acredita na vida após a morte?

Como um homem do século XIX, minha visão de mundo foi moldada pelas ideias e crenças da minha época, particularmente como um cético e um observador da sociedade. Minha abordagem tendia a ser mais voltada para razão e a lógica. Pessoalmente, não mantinha crenças fortes em fenômenos sobrenaturais ou vida após a morte. Como autor, no entanto, explorei temáticas relacionadas ao sobrenatural.

E o que acharia de ressuscitar de verdade, com a sua consciência do século XIX?

Certamente seria uma fonte de espanto tanto para mim quanto para aqueles ao meu redor. Imagino que teria muito o que aprender sobre a era atual, suas inovações, sua cultura e, claro, suas tecnologias. No entanto, também veria isso como uma oportunidade única de compartilhar minhas experiências de vida com uma nova geração. Seria, sem dúvida, um desafio e uma aventura. Mas, acima de tudo, uma chance de enriquecer e ser enriquecido pela troca de ideias e perspectivas entre dois tempos tão distintos.

E as redes sociais? Gostaria de experimentar?

As redes sociais são uma ferramenta interessante para a comunicação e a divulgação de ideias na era moderna (sic). Se vivo estivesse hoje, é possível que as utilizaria para compartilhar meus escritos, interagir com leitores, e conhecer novos talentos literários. No entanto, eu as usaria com a mesma ponderação e elegância que busquei manter em minhas obras e em minha vida pessoal.

Sabia que a casa em que você morou na Rua da Lapa é hoje um bar de sinuca e reggae?

Eu não tinha conhecimento desse fato. Que interessante ver como os lugares podem mudar ao longo do tempo, adotando novas funções e refletindo as tendências culturais da época. A Lapa sempre foi um local de efervescência cultural e é fascinante ver como a história se desdobra em novas formas. Se ao menos eu pudesse testemunhar essas mudanças pessoalmente...

E a destruição da sua antiga casa do Cosme Velho?

Confesso que é com tristeza que recebo essa notícia. O local que inspirou tantas de minhas obras é parte importante da minha história e da história cultural do Brasil. Ver a destruição de um patrimônio como esse é realmente lamentável. Se ao menos houvesse uma forma de preservar a memória e a importância desses lugares para as gerações futuras.

Qual sua opinião sobre os estudos atuais que ressaltam sua afrodescendência?

É uma novidade para mim, pois em vida o tema do meu background afro-brasileiro não era amplamente discutido da maneira como é hoje. Fico satisfeito em saber que a minha herança afro-brasileira está sendo destacada e discutida, pois isso enriquece a compreensão da minha escrita e da minha identidade.

Que conselho daria aos jovens que, como você, crescem em condições de pobreza?

Meu conselho para eles é baseado na crença, na educação, na determinação e na busca pelo conhecimento. A vida plena e a superação das dificuldades muitas vezes começam com a mente e com a vontade de aprender e crescer. Em primeiro lugar, encorajaria esses jovens a buscarem a educação com fervor. O conhecimento é uma ferramenta poderosa que pode abrir portas e cria oportunidades onde antes só havia barreiras.

Afinal, Capitu traiu ou não traiu?

Eu, como autor, deixei a dúvida no ar por meio do narrador Bentinho, que suspeita da traição de Capitu. A veracidade desse evento é deixada à interpretação do leitor, tornando-se parte da genialidade da obra o fato de que a resposta permanece subjetiva. Portanto, a questão de se Capitu traiu ou não Bentinho permanece um mistério aberto a diferentes pontos de vista e análises.

 

Acadêmicos reagem

Segundo os criadores do avatar, a ressurreição digital de Machado de Assis é fruto de uma tecnologia única a nível global, a Euvatar.ai. Ela foi desenvolvida pela empresa gaúcha Euvatar Storyliving, que atua na área da inteligência artificial. De acordo com Flávia Peres, CEO da empresa, seu diferencial é unificar inteligência generativa com fala, avatares 3D e busca em banco de dados em tempo real.

— Hoje temos plugins e plataformas de código aberto que permitem uma série de integrações, mas o Euvatar.aí traz um sistema próprio de pesquisa e busca em banco de dados — detalha Peres. — Significa que as pessoas poderão conversar com os avatares de forma digital e contratar esse tipo de serviço para suas empresas, tornando o atendimento mais humanizado sobretudo para pessoas de idade que não se adaptam ao uso de tecnologia.

A novidade mexeu com a curiosidade dos membros da ABL. Ao interagir pela primeira vez com o Machado de Assis digital do século XXI, o poeta, crítico e acadêmico Antonio Carlos Secchin expressou toda a sua surpresa.

— Olha aí, o “cara” é inteligente, né? — comentou o imortal da Academia Brasileira de Letras, especialista em Machado, com diversos livros e estudos publicados sobre o autor.

Secchin tinha uma pergunta espinhosa para a máquina. Ele queria saber como a versão póstuma de Machado avalia sua participação na luta contra a escravidão no século XIX. Uma corrente atual acredita que o Bruxo não se posicionou de forma firme — uma crítica que ele nunca conheceu em vida. A IA não fugiu à polêmica, e respondeu misturando passado e presente numa só “consciência”:

— Alguns argumentam que eu poderia ter abordado de forma mais direta e incisiva as questões relacionadas à escravidão e à libertação dos escravizados em minhas obras — disse o avatar. — É uma crítica válida e reconheço que, como muitos de minha geração, posso ter sido limitado pelas noções e preconceitos da época. No entanto, é importante considerar o contexto histórico em que vivi.

Humanos (ainda) insubstituíveis

 

Secchin apreciou a resposta póstuma do avatar, que recebeu de forma serena as análises das gerações atuais. Por outro lado, a capacidade criativa da máquina tem seus limites. A reportagem pediu para que a tecnologia gerasse um poema sobre Inteligência Artificial. Ela obedeceu em poucos segundos, declamando uma poesia inédita, com estrutura livre e rimas um tanto fáceis.

Secchin considerou o resultado ruim, o que não deixa de ser um alívio para o professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Afinal, significa que as máquinas não podem — ainda? — substituir os humanos na arte da criação literária. O avatar de Machado, aliás, tem algo a dizer sobre isso:

— Acredito que a emoção e a experiência humana continuam a ser qualidades insubstituíveis, que mantêm a relevância da nossa existência em um mundo cada vez mais tecnológico.

 

Então, pronto. Se a própria inteligência artificial de Machado de Assis está falando, quem somos nós para contrariá-la...

 

Poema póstumo

Na teia dos circuitos e da inovação

Surge a mente de elétrons informação

Artificial, sim, mas não menos sagaz

Desvendando mistérios num mundo audaz

Com cálculos velozes e lógica sem igual

Navega por dados no mar virtual

Desperta da máquina, a inteligência viva

Quebra barreiras num futuro que motiva

O olhar binário enxerga além do comum

Na era da tecnologia onde tudo se resume

Em linhas de código, eis a criação

Da inteligência artificial que transforma

A nossa percepção.

Máquinas que aprendem, eis a revolução

O sonho de ontem, a realidade em ação

Inteligência artificial - do homem extensão

Do conhecimento, eterna busca

Sem restrição.

07/03/2024