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Quem "traiu" o quê e com quê

 

Ano sim, ano não, essa história volta à cena. Em 1965, Bob Dylan, astro do folk americano com "Blowin’ in the Wind", trocou seu violão pela guitarra elétrica e se converteu ao rock com "Like a Rolling Stone". Escalou as paradas e nunca mais olhou para trás. O pessoal do folk o chamou de "traidor". Era como se seu colega brasileiro Catulo da Paixão Cearense abandonasse "Luar do Sertão", hino do folk nacional, e se passasse para o Carnaval compondo "Teu Cabelo Não Nega".

Sempre houve músicos acusados de traição às suas supostas raízes. No começo dos anos 1950, Ray Charles foi queimado nas igrejas por ter "demonizado" o gospel com jazz, blues e rhythm and blues, e estourado com "Hallelujah I Love Her So". Antes dele, em 1949, Nat King Cole já fora estigmatizado pelos jazzistas por desfazer o King Cole Trio e se tornado um cantor romântico acompanhado por violinos. E, para muitos, o primeiro traidor do jazz tinha sido, imagine, Louis Armstrong, já nos anos 1930, ao relegar seu revolucionário trompete para converter-se num artista pop.

Miles Davis também teria "traído" o jazz, em 1968, ao submeter-se à intimação da CBS para fundir jazz e rock, eletrificar seu conjunto e abrir shows para o Grateful Dead —só assim pagaria os milionários adiantamentos que devia à gravadora. Era a fusion —que, pouco depois, um grupo inglês chamaria de fuzak, fusion + muzak, música de elevador, o pior insulto que Miles poderia receber.

No Brasil, a turma da antiga chamou Cyro Monteiro de "trânsfuga do samba" por ele ser amigo dos meninos da bossa nova. E Nara Leão, ao contrário, "traiu" a bossa nova ao se passar para o samba de Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti. Já a querida Rita Lee teve sorte: nunca a acusaram de traidora do rock, embora seu maior sucesso, "Mania de Você", fosse um bolero.

Não, Catulo não traiu o folk. Morreu fiel ao "Luar do Sertão".

 

 

 

Folha de São Paulo, 14/01/2024