Silvano Raia é uma das maiores autoridades em transplantes do Brasil. Foi o primeiro cirurgião a realizar transplante de fígado, na década de 1980, no Hospital das Clínicas da USP. O cirurgião também desenvolveu a técnica de transplante de fígado intervivos, o que possibilitou a ampliação de transplantes de fígado para crianças. Dados do Global Observatory On Donation And Transplantation mostram que ao longo de 22 anos, 86 mil pessoas no mundo foram salvas com esse método, que passou a ser utilizado em adultos também.
O professor emérito da Faculdade de Medicina da USP e membro da Academia Nacional de Medicina, é também exemplo do envelhecimento saudável e longevidade. Aos 93 anos, trabalha 8 horas por dia, faz atividade física e se dedica a projetos científicos de vanguarda, como a sistematização dos xenotransplantes no Brasil.
Hoje, 12 de dezembro, ministrará a conferência "Como aproveitar o terceiro ato de nossas vidas", sobre envelhecimento e longevidade, que encerra o ciclo de palestras "Ciência, hoje", da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. Veja a seguir a entrevista com Raia.
O que o senhor fez e ainda faz para chegar aos 93 anos cheio de vigor e saúde?
Não existe segredo para a longevidade. Todos sabem que a longevidade depende da genética e dos hábitos de vida. Tenho uma boa genética, com uma família de longevos. Acredito que "o terceiro capítulo" se beneficia muito se você continuar mantendo a atividade mental e física. Manter a atividade física é mais difícil, mas a mental, não. Não consigo fazer o mesmo nível de atividade física que fazia antes, mas ainda faço esteira e pilates, três vezes por semana. E, principalmente, trabalho 8 horas por dia.
O senhor sempre se preparou para passar dos 90 anos com vigor ou passou a se dedicar a um envelhecimento saudável mais recentemente?
De uns 30 anos para cá surgiu uma especialidade da medicina chamada anti-aging ou anti- envelhecimento. Esse grupo acredita que administrando uma série de suplementos e estimulando uma série de exercícios você pode prolongar a vida. Eles fizeram estudos em ratos e camundongos e observaram que se você começa com essas intervenções na metade da vida do rato ele vive mais, o que equivaleria a 120 anos para o homem. Comecei a tomar esses medicamentos há uns 40 anos porque na universidade eu estava a par dessas pesquisas e acreditei nisso. Hoje, muitas pessoas tomam.
Quais suplementos o senhor toma?
Seguramente são mais do que 11. Duas substâncias que eu acho que deveriam ser preconizadas para todos são 1g de metformina e 500mg de resveratrol por dia. O anti-ageing também preconiza a realização de exames de sangue a cada 90 dias para saber quais são os suplementos necessários, que variam de acordo com cada indivíduo. Então, realizo esses exames e tomo os suplementos, de acordo com a minha necessidade.
Como é a sua alimentação?
Defendo dietas ricas em fibras, portanto verduras e frutas, e substâncias naturais, como carne e peixe fresco. A alimentação diária tem que ser muito saudável. Deixo as comidas mais elaboradas para quando quero jantar fora, a cada 15 dias. Existem dados que estimulam períodos intermitentes de jejum para prolongar a longevidade, com base em observação de habitantes da ilha de Okinawa, no Japão. Experimentos demonstraram que períodos de jejum intermitente fazem muito bem para estimular o epigenoma, que é o responsável pelo envelhecimento da célula e pelo prolongamento de vida. É quase como se o ser humano não fosse uma espécie para viver em fartura e um período de dificuldade fosse util. Há também estudos que preconizam banho gelado todo dia. Teoricamente, essas são algumas ações para aumentar a longevidade. Eu tomo meus comprimidos todos os dias, mas o banho gelado e o jejum intermitente, não.
Na sua opinião, quais são os principais avanços na medicina nas últimas décadas que permitiram um envelhecimento saudável?
De uma maneira muito geral, diria que de um lado estão conseguindo controlar doenças que causavam muita mortalidade na juventude, entre elas se distingue o câncer. Hoje, vários tipos de câncer são tratados. Um exemplo é o melanoma que, há 30 anos, tinha uma mortalidade de 90% e hoje, é de 3 a 4%. É uma doença controlada. Também tivemos evolução no câncer de mama, nas leucemias etc porque além da quimioterapia, existe agora um tratamento muito eficaz que é a imunoterapia, com substâncias que combatem a célula tumoral por mecanismo de imunologia. A diminuição das causas de mortalidade também influi no tempo médio de vida e, além disso, tudo aquilo que falei anteriormente.
Que conselho o senhor daria para quem quer passar dos 90 anos bem, com vigor?
Levar uma vida saudável, realizando esporte e atividades. Tentar não se aborrecer. Evitar usar esse modelo de vida que é viajar como se estivesse em um trem bala e não ver a paisagem. Também preconizo ter uma atividade prazerosa. Enfim, viver uma vida mais vivida. Acho que é isso.
O senhor realizou o primeiro transplante intervivos no mundo. Na sua opinião, quais foram as principais mudanças na área de transplantes ao longo das últimas décadas?
O grande progresso dos transplantes foi o desenvolvimento dos imunossupressores. Também tem se aprendido que os melhores resultados são dos times dos centros que fazem muitos transplantes, o que é óbvio. Existem centros no Brasil, que realizam mil transplantes de rim por ano, por exemplo. Eles tem resultados melhores do que aqueles lugares que fazem transplantes esporádicos porque o transplante não é uma cirurgia que pode ser feita por um cirurgião geral, em um hospital geral. Ela precisa de profissionais e centros especializados.
Onde ainda precisamos evoluir?
Primeiro, incentivar a população a autorizar em vida o uso dos seus órgãos em caso de morte cerebral. Segundo, favorecer a centralização de especialistas em institutos de transplantes. Terceiro, esperar que o xenotransplante venha a oferecer órgãos tanto quanto necessário. Isso vai mudar tudo. Hoje, só se indica um transplante quando o paciente está com um quadro muito avançado. Se você tem órgãos à vontade, é possível fazer isso antes e ter um receptor mais sadio, com melhor evolução.
Atualmente, um dos projetos aos quais o senhor se dedica é à sistematização dos xenotransplantes no Brasil. O senhor poderia explicar a importância desse método para a área de transplantes?
O sucesso dos transplantes de órgãos em geral e o aumento da idade média da população determinaram que a demanda por transplantes aumentou muito. Mas a incidência de morte cerebral não aumenta. Então existe uma demanda reprimida. Faltam órgãos para atender todas as pessoas e isso cria a lista de espera, nas quais muitos inscritos morrem antes de serem transplantados por falta de órgãos. Um levantamento da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) de 2022 mostrou que 7 inscritos morreram por dia, por falta de órgãos. Diante disso, vários centros no mundo começaram um trabalho para detectar órgãos adicionais, que são aqueles que a morte cerebral não fornece. Entre os métodos que buscam isso, os melhores resultados são oferecidos pelo xenotransplante, que visa transformar geneticamente animais para que seus órgãos possam ser transplantados em humanos. Supreendentemente, o animal que mais se adapta a isso, é o porco. Há seis anos, eu e a Mayana Zatz estamos coordenando um projeto muito grande e muito importante, que é a sistematização do xenotransplante de suínos no Brasil. Já sistematizamos a engenharia genética e produzimos embriões clonados que irão nascer em fevereiro. Agora estamos construindo dois biotérios de suínos totalmente estéreis, ambos na Cidade Universitária da USP. O primeiro fica pronto em breve e é lá que esses animais geneticamente modificados irão nascer. Isso é necessário porque para usar o órgão do suíno em humanos, ele precisa ser estéril, senão junto com o órgão são transmitidos germes suínos para a espécie humana. Aprendi que é inútil prever, mas acho que em dois ou três anos estaremos fazendo os primeiros transplantes em humanos. Esse trabalho mostra que é possível fazer pesquisa na fronteira do conhecimento também em medicina, desde que haja financiamento.
O senhor tem medo da morte?
Não me apavora. Eu já trabalhei muito isso comigo mesmo e, hoje, aceito isso como natural e inevitável. Eu sei que daqui a 6, 8, 10 anos ou menos, eu vou morrer. É inegável que todo ser humano lúcido tenha a noção da finitude. Mas gostaria de ter um fim súbito para não ter um período final com uma vida degradada.
Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/saude/medicina/noticia/2023/12/12/nao-leve-a-vida-como-se-estivesse-em-um-trem-bala-sem-ver-a-paisagem-diz-silvano-raia-aos-93-anos-sobre-longevidade.ghtml
12/12/2023