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Atiraram no pianista

 

Foi coincidência. Aconteceu de, na outra semana, eu assistir ao filme "Atiraram no Pianista", dos espanhóis Fernando Trueba e Javier Mariscal, sobre o desaparecimento do pianista brasileiro Tenório Jr. em Buenos Aires durante a ditadura argentina, e, dias depois, estar na mesma Buenos Aires, diante do Hotel Normandie, de que Tenorio saiu em 1976 para nunca mais ser visto. Tenório foi um dos grandes talentos do samba-jazz, a melhor música instrumental do mundo em meados dos anos 1960. Dez anos depois, quando ele desapareceu, essa música já fora destruída pelas gravadoras e Tenório se tornado coadjuvante de Vinicius de Moraes e Toquinho em turnê pela Argentina.

O Hotel Normandie, onde o grupo se hospedou, fica na Rodriguez Peña, quase esquina de Corrientes. Na noite de 18 de março, o alto, barbudo e apolítico Tenório teria saído (para comprar cigarros ou um sanduíche ou um remédio) e sido confundido com um terrorista local pelos agentes militares. Levado para um centro de tortura, foi tão machucado que, ao se constatar o engano, já não era possível devolvê-lo. O jeito era matá-lo —e, tudo indica, com a conivência de funcionários da embaixada brasileira, fiéis à nossa própria ditadura. Tenório tinha 34 anos.

Em 2011, o Normandie afixou uma placa na fachada em homenagem a Tenório. Ao notar que ela não estava lá, fui perguntar na recepção. Disseram-me que fora arrancada, quebrada e deixada em cacos na calçada. Eles haviam recolhido os cacos e guardado no depósito. Quem teria feito isto? Não sabiam. Mas não parecia simples vandalismo. Cheirava mais a um ato de ódio —e Buenos Aires está cheia de brasileiros praticantes desse ódio.

Trueba acertou ao fazer um filme de animação, com a incrível reconstituição dos cenários por Mariscal. Mas a história que ele conta é apenas a oficial.

Que, como se sabe hoje, ainda está cheia de perguntas sem respostas

Folha de São Paulo, 30/11/2023