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ABL na mídia - O Globo - Artigo: Lembrança de Alberto da Costa e Silva

 

Neste momento da morte de Alberto da Costa e Silva, a figura do africanista dominará majoritariamente os comentários, por motivos óbvios e justos. Ao evocar um querido amigo de três décadas, acho importante lembrar que ele foi muito mais do que um estudioso da África, pela qual seu amor e fascínio inegáveis estão registrados não apenas na obra escrita, como na muito bela e seleta coleção da arte africana que reuniu em sua casa. Estas linhas não passam de um ínfimo depoimento pessoal, o único que pode descrever tais características pouco conhecidas.

Antes de tudo, Alberto era o filho de Da Costa e Silva, o grande poeta do Piauí, nome notável do último Simbolismo, à memória do qual ele se dedicou durante toda a vida, nas diversas edições de suas obras, amor filial brilhantemente registrado no documentário “O retorno do filho”, de Douglas Machado, 2009. No ano anterior, centenário de “Sangue”, livro de estreia e o mais célebre de seu pai, ele nos convidou para escrever um ensaio comemorativo, que lá foi publicado. De fato, o soneto “Saudade”, uma espécie de brasão do Piauí, saiu naquele livro.

Bem antes disso, em 1999, fizéramos a quatro mãos a “Antologia da poesia portuguesa contemporânea”, um panorama, conjunto sem paralelo em tal temática, que reunia 72 autores e que teve duas edições, obra infelizmente esgotada.

Em 2001 participei da importante livro “O Itamaraty na cultura brasileira”, por ele organizado, com duas edições em três línguas. E nossas participações, lado a lado, em eventos públicos, foram marcantes, desde o encontro “Prosa nas livrarias”, sobre Guimarães Rosa — do qual foi colega e amigo —, com a presença Nelson Pereira dos Santos, organizado por O GLOBO em 2006, até o que abriu a exposição “Folhetos de cordel portugueses: Coleção Arnaldo Saraiva”, em 2014, ou, dois anos mais tarde, a mesa-redonda inaugural da exposição sobre a obra de Odylo Costa Filho, comemorativa dos 101 anos do seu nascimento e da doação de seu arquivo pessoal, ambas na Casa de Rui Barbosa.

Grande poeta essencialmente lírico, filho de outro, e profundo conhecedor de poesia, o tema da memória é um dos fundamentos da sua obra, ressalvando que o amoroso também tem presença importante nesse registro memorialístico. Como Aragon, que publicara “Les yeux d’Elsa” em 1942, Alberto publicou, em 1997, “Ao lado de Vera”, para a sua inesquecível esposa e musa. Outra característica da sua poesia, de uma severa exatidão, é a grande brasilidade. Seus sonetos brancos, gênero difícil, ou com o uso não regular de rimas toantes, são dos melhores da poesia brasileira. A poesia concentrada e discreta de Alberto da Costa e Silva é de uma sobriedade rara no nosso lirismo contemporâneo, de uma aguda densidade que nada tem com o fetichismo da concisão que tantos resultados lamentáveis produziu nas últimas décadas.

A qualidade do ser humano, esta nunca aparece para os que não tiveram o privilégio da sua intimidade. Antes de tudo, e tema digno de um ensaio, é preciso lembrar o seu inapreciável trabalho de divulgação da cultura brasileira, com um natural destaque para a poesia, em Portugal e outros países lusófonos. A carreira exemplar de Alberto da Costa e Silva na nossa diplomacia sempre foi marcada por essa militância cultural tão silenciosa quanto eficaz, que segue presente na memória de quantos a conheceram.

No início do atual milênio, já de triste memória, Alberto foi informado da insustentável situação financeira em que se encontrava o seu amigo de infância, o memorialista, crítico e pensador católico Antonio Carlos Villaça, com o qual, aliás — ambos adolescentes —, entrevistou Manuel Bandeira. Muito rapidamente, ele capitaneou um grupo de cerca de vinte e poucos amigos do velho escritor, uma espécie de informal “Sociedade de Amigos de Antonio Carlos Villaça”, que, com doações mensais de cada um, conseguiu mantê-lo com toda a dignidade até o seu falecimento. Nem sei se tal fato chegou a ser divulgado, mas o momento o justifica, e tais misérias não são raras no Brasil, país onde se fala de cultura quase a cada minuto, onde todos amam ler, todos se declaram devoradores de livros ou ratos de bibliotecas, e no qual qualquer artista ou intelectual sem vínculos institucionais pode muito naturalmente morrer de fome, por maior que seja a obra que tenha produzido.

Assim era Alberto da Costa e Silva, para além do africanólogo. Filho exemplar de um pai que venerava, poeta de raro requinte, melômano apaixonado por Bach, admirador e conhecedor da admirável arte subsaariana, amigo de seus amigos, e mais, do que tudo, homem bom, o que talvez seja o mais precioso e o mais raro de tudo.

Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/noticia/2023/11/28/artigo-lembranca-de-alberto-da-costa-e-silva.ghtml

28/11/2023