Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Noticias > ABL na mídia - Folha de São Paulo - Coleção mostra percurso de Machado de Assis até seus grandes livros

ABL na mídia - Folha de São Paulo - Coleção mostra percurso de Machado de Assis até seus grandes livros

 

Reedição da obra completa que Machado de Assis publicou em vida, em 26 volumes dispostos em ordem cronológica, possibilita novas interpretações sobre sua formação como escritor, seu salto de qualidade em "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e a respeito de como a escravidão é retratada em seus livros.

Machado de Assis morreu 115 anos atrás, mas está mais vivo que qualquer outro escritor brasileiro. O legado do autor defunto, tal como a bossa nova ou Pelé, transmite ao mundo a identidade utópica que tanto almejamos: a apropriação criativa e desabusada que converte a cultura dos grandes centros hegemônicos em algo único, explosivo e brasileiro.

Alguns exemplos recentes atestam esse atemporal fascínio machadiano. Em 2020, uma nova tradução de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" nos Estados Unidos ficou esgotada em apenas um dia. No ano passado, dois elogiados romances brasileiros transportaram o escritor para os dilemas do século 21 ("A Vida Futura", de Sérgio Rodrigues, e "Homem de Papel", de João Almino).

Em setembro deste ano, o português Ricardo Araújo Pereira lançou um podcast sobre humor cujo título, "Coisa Que Não Edifica Nem Destrói", é tirado de uma definição de Brás Cubas para suas memórias; e, em fins de outubro, um congresso em Roma, "Machado de Assis: A Complexidade de um Clássico", reuniu pesquisadores de Brasil, Estados Unidos, França, Inglaterra, Portugal e Alemanha.

De forma geral, a afirmação de sua negritude abriu novas vertentes interpretativas nas últimas duas décadas.

Amarrando, de certa forma, todos esses pontos, o escritor também é tema do principal projeto editorial do ano no país. A editora Todavia, em parceria com o instituto Itaú Cultural, acaba de publicar uma coleção com todos os livros que Machado publicou em vida.

São ao todo 26 volumes, dispostos em ordem cronológica —por ora, só poderão ser adquiridos em uma caixa especial, em edição limitada; no ano que vem, os títulos serão vendidos separadamente. No dia 18 deste mês, o Itaú Cultural também inaugura uma exposição dedicada ao escritor, com objetos pessoais e vídeos sobre suas obras.

O relançamento dos livros foi idealizado por Hélio de Seixas Guimarães, professor da USP e um dos principais pesquisadores da obra machadiana. Ele é também vice-diretor da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, onde organizou uma exposição com as primeiras edições dos livros de Machado. Lidar diretamente com cada um desses títulos foi uma experiência surpreendente até para um especialista como ele. Em conversa com o editor Flávio Moura, da Todavia, surgiu a ideia de uma coleção que expusesse esse percurso.

O projeto levou quatro anos para ser concretizado e contou com uma equipe de cerca de 20 pessoas. Os volumes tomam como base as últimas edições de cada título revistas por Machado, assim como preservam a pontuação bastante peculiar do escritor (vírgulas, pontos, travessões que expressam hesitações e ironias), alterada em alguns relançamentos por não estar de acordo com regras gramaticais estabelecidas após a morte dele, em 1908. Cada um dos livros traz uma apresentação inédita do organizador da coleção.

Até então, as edições mais completas disponíveis agrupavam as obras de Machado em função dos gêneros: um volume para os romances, outro para os contos publicados em livros, um terceiro mesclando contos avulsos, poesia, teatro e cartas, e um quarto com crônicas e textos diversos na imprensa. Essa divisão, avalia Guimarães, valoriza determinadas obras em detrimento de outras e acaba por camuflar a trajetória de formação do escritor.

Na caixa agora lançada, ganham evidência o volume e a variedade de gêneros a que Machado se dedicou em quase 50 anos de publicação, da peça "Desencantos", de 1861, ao romance "Memorial de Aires", de 1908. "Esses livros, todos juntos, mostram como Machado se constituiu como escritor, foi formando, desenvolvendo uma técnica para a realização daquilo que conhecemos melhor de sua obra", conta o professor da USP.

Em geral, o Machado lido e estudado é o da grande fase da prosa, o romancista e contista genial que se estabeleceu com "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881). Até chegar a seu defunto autor, contudo, já havia publicado 13 livros nas duas décadas anteriores.

Machado estreou na publicação de livros com peças de teatro, talvez a parcela de sua produção menos conhecida hoje. O primeiro deles, "Desencantos", traz a história de uma viúva às voltas com dois pretendentes. O enredo é singelo, mas menos banal do que a sinopse pode sugerir. Já estavam lá marcas distintas de toda a produção do autor, como a figura da viúva, o ciúme, a rivalidade amorosa entre um homem prático e um idealista, o papel subalterno das mulheres naquela sociedade.

O casamento, já indica o título, era uma outra modalidade de jogo social que redundava em tédio. Como observa Guimarães em sua introdução, Clara, a protagonista, diz frases ousadas, dúbias, ao segundo marido, o político Pedro Alves, tais como: "Quem o atender, supõe que se casou comigo pelos impulsos do coração. A verdade é que me esposou por vaidade, e que quer continuar essa lua de mel, não por amor, mas pelo susto natural de um proprietário, que receia perder um cabedal precioso". Clara é o rascunho das mulheres que o escritor criaria mais tarde.

Machado tinha na ocasião apenas 22 anos, contudo já era figura conhecida nos círculos literários do Rio. Por volta dos 15 anos passou a colaborar em periódicos importantes, publicando poemas, traduções, contos, crítica e ensaios —nestes últimos, com espantosa assertividade para um garoto, fazia considerações sobre o futuro da literatura, da imprensa e do teatro brasileiros.

O segundo livro, "Teatro", saiu em 1863, composto por duas comédias, "O Caminho da Porta" e "O Protocolo", que chegaram a ser encenadas, ao contrário da do livro anterior. Novamente, levou aos palcos os jogos amorosos da elite fluminense, sob os quais já se intuía sua visão naturalmente pessimista.

No livro seguinte, "Quase Ministro" (1864), Machado estreia na sátira política. Desta vez as intrigas palacianas ganham primeiro plano na peça. Boatos de que um deputado seria nomeado ministro são o ponto inicial de uma visão derrisória da política no Segundo Reinado que se acentuaria depois. Em um paralelo instigante, podemos pensar em um dos mais célebres capítulos de "Brás Cubas", "De Como Não Fui Ministro de Estado", narrado apenas por uma sucessão de pontos, sem palavras.

Matéria na íntegra: https://www1.folha.uol.com.br/amp/ilustrissima/2023/11/colecao-mostra-percurso-de-machado-ate-seus-grandes-livros.shtml

06/11/2023