São cerca de 300 obras — marcos da literatura ocidental em primeiras e em raras edições, numa viagem cultural que vai da “Bíblia Sagrada”, de “A Ilíada” e “A Odisseia” até Ulisses”, de James Joyce. Presentificam-se, em espaço próprio, obras ficcionais de escritores brasileiros e latino-americanos. Elas integram a exposição “Nova Babel (in) finita”, que estará aberta ao público amanhã, às 17h, na Academia Brasileira de Letras, no Centro do Rio.
Orientadores dos rumos do percurso, numa feliz associação, textos de Jorge Luis Borges: o escritor argentino escreveu sobre a maioria dos livros expostos e dos seus autores. Sua concepção inspira-se em quatro de seus contos: “A Biblioteca de Babel”, “ A memória de Shakespeare” , “O Aleph”, “A escrita de Deus” . Em decorrência, a mostra está imersa numa atmosfera borgiana: no título, na montagem labiríntica, marcada de hexágonos, de espelhos, de textos mobilizadores de reflexão e de um certo mistério. Nem falta o borgiano curador Facundo Sarmiento.
Os livros que a integram evidenciam, na dinâmica do processo cultural em que se inserem, a estreita relação entre passado e presente. As obras oferecidas ao olhar dos visitantes da exposição fazem parte do acervo da biblioteca particular de Gilberto Schwartsmann. Na base da idealização, do conceito e da montagem, a sua familiaridade com a arte literária, que conhece como poucos. Conheci-o numa sessão virtual sobre “Pandemia e Literatura”, realizada pela Academia Nacional de Medicina.
O contato com sua obra ficcional, notadamente os romances “Max e os demônios” e “A amante de Proust”, confirmou a primeira impressão decorrente de sua fala naquele encontro: o médico de altos méritos é também senhor de notável erudição, possuidor de um olhar crítico agudíssimo voltado para as manifestações artísticas, a Geografia, a História, a Filosofia, as religiões. A esses atributos, aliam-se a arte do ficcionista e a concepção da Exposição.
Em ambas, presentificam-se criador e alter ego que dividem, de um lado, a narrativa dos textos literários, de outro, os textos-roteiros da Mostra. Nos romances, o narrador-titular divide a narrativa com os personagens. Na Exposição, com Jorge Luis Borges e com o borgiano curador Facundo Sarmiento. Em uns e na outra configura-se a presença de livros que integram o cânone da literatura ocidental. Na ficção, a trama envolve a genealogia do narrador-titular, o reencontro com os seus “ancestrais”, todos espalhados ao longo da História.
Esse parentesco vai dos filósofos e dos autores clássicos às pessoas que frequentam o seu cotidiano, espalhados por vários lugares do mundo. Na tecedura, mesclam-se espaços do imaginário e do sonho e retratos da realidade vivida. Confundem-se criador e alter ego. O narrador se revela crítico de arte, crítico de literatura, analista de fatos históricos, exegeta de textos religiosos. A narrativa se faz de um diálogo com inúmeras obras do cânone ocidental. Insere-se na linhagem dos romances que a integram à narração e à digressão. Frequente, a metalinguagem, espaço em que o autor explicita o traçado do tecido do seu texto. Tudo se mistura com doses de humor.
Esses aspectos estão presentes na exposição, na exibição das obras fundamentadoras da criação ficcional. Nesta última, como na concepção da mostra, o sonho, que o narrador de um lado e o curador do outro utilizam para deixar fluir a imaginação criadora. Nele associam-se harmonicamente realismo de detalhe e realismo mágico. A exposição nos põe em contato com a chave da decifração dos mistérios escondidos na trama dos romances. Nestes, sub-reptícia, a presença sutil do “Decameron”, de Boccacio, e a técnica narrativa de Sherazade, das “Mil e uma noites”. Na exposição, a de Jorge Luis Borges.
Em síntese, ficção e exposição revelam, o que é comum entre o criador e as obras criadas, associam nas narrativas, romance, ensaio, crítica, ficção e realidade. A “Nova Babel (in) finita” exibe o parentesco intelectual de Gilberto Schwartsmann com os livros que marcam a cultura universal, em especial os textos de literatura. Ambas, ficção e mostra, constituem revelações da criatividade, da dimensão intelectual e do entusiasmo pela causa da Cultura do gaúcho Gilberto Schwartsmann.
Domicio Proença Filho é escritor e crítico literário
Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/noticia/2023/10/30/artigo-exposicao-da-abl-e-celebracao-da-literatura.ghtml
30/10/2023