Quando se diz que as instituições estão funcionando na nossa democracia, usa-se uma complacência característica de nossa cultura, sem se exigir rigor nessa definição. Na verdade, nossa institucionalidade é tão disfuncional que contamina qualquer sistema ou instrumento jurídico que exista para conter arroubos autoritários de autoridades.
É o caso do impeachment, que se transformou em um ativo político nas mãos do Congresso para chantagear o governante da ocasião. Pela direita, com Collor e Temer, ou pela esquerda, com Dilma, o impeachment bateu em Chico e Francisco, e o resultado teve a ver historicamente com a relação do Executivo e Congresso.
Collor, quando tentou reorganizar seu governo e comprar adesões, já estava crucificado pela soberba pessoal e pela corrupção. O então ex-presidente Lula tentou ajudar sua sucessora na negociação política para evitar o impeachment, ficou de plantão permanente em um hotel de Brasília parlamentando, mas a incapacidade de Dilma de se relacionar com diferentes impediu-a de continuar a exercer o governo, além do abuso do poder que decretou seu impedimento definitivo.
Temer, apesar de ter sido alvo de dois processos de impeachment, teve apoio suficiente no Congresso para escapar. Estamos já há algum tempo a distorcer nosso sistema de governo, que é presidencialista por definição e por escolha popular em dois plebiscitos. No governo Bolsonaro, houve um parlamentarismo de fato, quando o então presidente entregou ao Congresso o seu governo para se dedicar ao golpe que acabou fracassando.
Bolsonaro começou seu governo fingindo ser o antissistema, esnobando os partidos políticos e disposto a negociar com grupos específicos, suprapartidários: bancadas evangélicas, da bala, do agro, imaginando que assim poderia suplantar os partidos, aos quais nunca deu muita importância. Fez parte de nove deles, e não conseguiu organizar o seu próprio, apesar da vitória em 2018. De antissistema passou a dominado pelo sistema, especialmente pelo Centrão, aninhou-se com gosto em seus braços e permitiu que o orçamento secreto fosse dividido como um butim de guerra entre seus aliados.
O presidencialismo de coalizão, que funcionou bem durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e foi perdendo força institucional com os acordos partidários fisiológicos, transformou-se sob Bolsonaro num parlamentarismo branco, que deu ao Congresso poderes dos quais os parlamentares não querem abrir mão. Lula, na campanha presidencial de 2022, criticou o orçamento secreto, e contou com o apoio do Supremo Tribunal Federal (STF) que o rejeitou por inconstitucional.
A decisão do STF tinha razão de ser: não é possível distribuir verbas para projetos que não estejam previstos nos programas do governo eleito, ou não se adequem a eles. Lula não teve o ônus político de acabar com o orçamento secreto, mas continua sendo cobrado por ele, e está cedendo gradativamente. Em vez de tratorar os partidos políticos, como tentou fazer com o PMDB em 2003, Lula quer levar todos eles para dentro do seu governo. É uma espécie de blindagem contra impeachment, e a tentativa de controlar o Congresso com a distribuição de cargos e emendas.
Aparentemente vai conseguir a adesão de parte considerável do Centrão, mas é duvidoso que consiga fidelidade e apoio programático. O Congresso é conservador e cada vez mais pragmático sem pudor. Lula assim como Bolsonaro distorcem o presidencialismo de coalizão e tentam criar um parlamentarismo de contenção. Deu certo com Bolsonaro porque ele abriu mão de governar e o Congresso era seu aliado ideológico na maioria. Com Lula, não há essa garantia de lealdade, nem mesmo de votos de cada partido.