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O dia em que me dei aos outros

 

Cuidar de um canto da cidade será sempre tão excitante quanto cuidar de um filho. E tão difícil quanto

Eu devia ter uns 13 para 14 anos de idade e tinha amigos que frequentavam o cinema brasileiro. Alguns, como eu, faziam isso quase que secretamente, para que não soubessem dessa fraqueza. Tinha vergonha do que se contava na tela, considerava tudo aquilo uma falta do que filmar, como havia eventual falta do que dizer ou fazer. Tinha vergonha dos roteiros cheios de furos, dos artistas em busca do que expressar, dos efeitos vagabundos, de tudo. Acho que foi por aí que me tornei cineasta, um cineasta brasileiro.

Minha mãe, educada em Maceió, tinha horror do Rio de Janeiro, uma cidade violenta e cheia de gente que se locomovia em carros velozes, muitos carros que deviam passar pelas pessoas nas calçadas a 30, 40 ou até mesmo 50 km por hora. Minha mãe odiava a velocidade dos carros e das pessoas, preferia evoluir pelas calçadas muito mais lentamente, como se passeasse num parque, como eram quase todas as passagens de ruas da ainda pequena cidade de onde ela vinha.

No Rio de Janeiro, para onde meu pai se mudara com a família por causa de trabalho, fui estudar no Colégio Santo Inácio, com meus dois irmãos, Fernando Manoel e Claudio Antonio. Anos depois, o mais velho se tornaria um almirante brasileiro respeitável, o primeiro a instalar a Marinha do Brasil no extremo sul do Hemisfério Sul. O segundo, trabalhador, inteligente e esperto, foi ganhar dinheiro em Brasília, de onde nunca mais voltou.

Outro dia, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, declarou que “cuidar de uma cidade é como cuidar de um filho: fonte de inúmeras e enormes alegrias, a despeito de toda a dedicação, de toda a entrega, de todo o esforço, nem sempre as coisas saem como se espera”. Como um filho, a cidade que você tenta guiar para um rumo que julga o correto às vezes perde esse rumo com as melhores intenções. A melhor coisa do mundo, não há alegria maior do que ver seu filho sorrindo, diz o prefeito.

Como digo eu. Um canto da cidade, um canto qualquer da cidade que esteja sob seus cuidados, será sempre tão excitante quanto cuidar de um filho. E tão difícil quanto. Hoje a cidade enfrenta donos suspeitos, traficantes e milicianos que disputam cada canto dela a bala, sem piedade e sem atender à esperança das comunidades que de fato precisam desses espaços para urbanizá-los e realocar seus moradores, sobretudo com menos riscos e perigos.

Pois viver se tornou tão difícil quanto cuidar dos outros, mesmo que esses outros sejam membros de sua família. Mesmo que parte desses outros seja formada por seus filhos. Mesmo assim, será sempre difícil cuidar dos outros como você cuida de sua família. Ou, mais ajustadamente, de seus filhos.

Não importa. O que importa mesmo é distribuir as qualidades do que você possui, repartir com os outros (mesmo os outros desconhecidos) aquilo que você pode repartir, aquilo que merece sua ocupação, aquilo que está disponível para você. O que está disponível para você tem que estar disponível também para seu vizinho. Como se você tivesse a mesma responsabilidade que o prefeito tem sobre as coisas ao alcance de todos. Como o prefeito tem responsabilidade sobre o sorriso do filho dele.

Só assim podemos ir em frente, sem medo de errar o caminho, perder o rumo, encontrar seus filhos perdidos no mundo, guiados por traficantes e milicianos, à espera de nada. Ou da morte, da morte envergonhada. A cidade só poderá ter orgulho de si mesma quando for capaz de viver sem esse apoio desprezível de outros que não valem nada, não são nada.

O Globo, 12/03/2023