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Lumiar outra vez

 

‘Vai na Fé’ tornou-se um manifesto de coincidências visuais e dramáticas entre o cinema e a televisão

No campo de Minas Gerais, o verbo “lumiar” significa acender, iluminar, clarear, botar fogo em volta. Foi isso que sempre fizemos em nossos filmes dos anos 1960 em diante. Aquilo tudo era chamado de Cinema Novo e não tinha muita regra, o negócio era filmar o Brasil como a gente achava que ele era, a partir de sua cultura popular e sobretudo do que se encontrava diante de nossos olhos. E, se possível, fazer isso de um jeito original, como se estivéssemos inventando o cinema.

Depois o horror da ditadura militar nos separou e nos impediu de irmos muito mais adiante, apesar de alguns clássicos como “Macunaíma”, “O dragão da maldade contra o santo guerreiro”, “Brasil Ano 2000”, “Pindorama”, “Memórias do cárcere”, “Eles não usam black-tie”, e por aí vai.

A princípio, tínhamos horror à televisão. As novelas da Globo eram nossas inimigas, só pensavam em acabar com a gente por meio de comparações com o sucesso de seus melodramas. Elas eram a prova de nosso fracasso na comparação popular dos dois produtos. Quem começou a distensão entre cinema e televisão foi Daniel Filho, um dos mais bem-sucedidos diretores da Globo que desejava provar, por discurso e por ação, que não havia grande diferença entre duas coisas aparentemente tão distantes uma da outra.

Daniel não só defendia ardentemente a proximidade entre as duas atividades audiovisuais, como inaugurou a participação concreta da Globo na produção de filmes através da Globo Filmes. Como produtor associado, ele juntou-se a Renata Magalhães e Paula Lavigne garantindo a existência de “Orfeu”, filme baseado na obra de Vinicius de Moraes, com Toni Garrido no papel-título.

O sucesso nacional e internacional de “Orfeu” aproximou o cinema da televisão. A geração seguinte de autores de TV, tendo à frente Guel Arraes e Jorge Furtado, avançou na representação do audiovisual brasileiro. Através sobretudo da peça de Ariano Suassuna “O Auto da Compadecida”, que se tornou filme de sucesso sob a direção do primeiro citado, Guel Arraes.

Daí em diante, algumas diferenças criadas pelos próprios envolvidos no gênero foram sendo vencidas até chegarmos a uma síntese da obra audiovisual, como a novela que parece um filme do cinema brasileiro ,“Vai na fé”, atualmente em cartaz às 19hs. Antes dessa novela, Rosane Svartman já brilhara na mesma TV Globo, com a criação e direção de novelas (em parceria com outros filhos do cinema, como Paulo Halm e George Moura), ou em adaptações originais, como a de “Pluft, o fantasminha”, o grande sucesso de Maria Clara Machado.

Rosane Svartman fez de “Vai na fé” um verdadeiro manifesto de coincidências visuais e dramáticas entre o cinema e a televisão, consolidando um rumo possível para eliminar a diferença entre esses dois meios de expressão. Solange ou Sol é a personagem de Sheron Menezzes (excelente e belíssima atriz), voltando a seu papel juvenil de dançarina popular com o qual sempre sustentou a família. Agora, mãe de duas filhas quase adultas, depois de se tornar cantora gospel ela volta ao palco do funk para ganhar o dinheirinho com que pagará os compromissos da família com a luz e demais contas domésticas necessárias para sobreviver na cidade contemporânea e cruel.

Não sei dizer para onde Rosane Svartman pretende direcionar o rumo da novela que ela criou e comanda. Mas, no instante em que escrevo, “Vai na fé” ainda é um surpreendente exemplo de desenho claro e excitante do ambiente de hoje como acontece no Brasil e no resto do mundo. Não se trata apenas de contar uma história contemporânea que podia estar se passando a nosso lado, mas também de situá-la no contexto de tantos hábitos que conhecemos tanto e que nos ajudam a compreender onde estamos.

Para isso, Rosane Svartman usa realismo e poesia, seu diferenciado lumiar. Vale a pena ver televisão às 19hs!

O Globo, 12/02/2023