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Caçando sapo

 

A cultura popular é bem-sucedida quando o destinatário se comportar diante dela de maneira iluminada

No campo de Minas Gerais, o verbo “lumiar” significa acender, iluminar, clarear, botar fogo em volta. Sempre num sentido de muito mais clareza do que aquilo que jornalistas e cronistas do país inteiro costumam esconder por trás de suas odes musicais ou princípios traduzidos pela literatura. A palavra tomou um rumo muito mais de celebração do que ela mesma é isso.

A palavra serve também para identificar um pequeno distrito de Nova Friburgo, cidade serrana fluminense, a maior da região, no norte do Estado do Rio, que possui rios e riachos inesquecíveis, a formar restritas lagoas, múltiplos espaços para mergulhar e nadar, como numa pequena praia de água doce. Lumiar fica a cerca de 30km da sede do município e é hoje um lugar de descanso para os moradores de grandes e agitados centros urbanos por perto, como o da própria Nova Friburgo.

Como não podia deixar de ser, Lumiar serviu igualmente como sede capital de alguns dos músicos mais famosos de Minas, como Milton Nascimento. Em Lumiar, entre um show e outro, entre um mergulho nas suas fontes e os amores que ali nasciam, os músicos, sobretudo os mineiros, construíram um ramo absolutamente original da canção moderna no Brasil. Saudar o valor da música jovem do mundo inteiro não significava, para eles, ignorar o valor da música brasileira e ouvi-la com gosto e paixão.

Nenhum deles teve qualquer pudor em, antes dos baianos e dos cariocas, se sentir inteiramente apaixonado por soul e jazz, por baladas e canções europeias, pelo que rolava de melhor aí pelo Ocidente. E, como sempre acontece, uns se deram melhor que outros nessa súbita transformação pela influência. É claro que esses se destacaram, carregando com eles essas influências nem sempre respeitadas ou respeitosas.

A explosão da música popular brasileira na segunda metade do século XX encontrou essas influências muito nítidas e elas se desenvolveram de diversas maneiras. Uma dessas maneiras se deu especialmente através da música mineira e, para isso, a consagração num festival de TV de um compositor como Milton Nascimento foi decisiva.

Os mineiros criaram o chamado Clube da Esquina, do qual fizeram parte, além de Milton, compositores como Beto Guedes e Lô Borges. Eles compuseram, arranjaram meios de contarem com suas canções, gravaram suas obras. Depois de algum tempo a liderança de Milton se tornou incontornável, continuava viva, firme e positiva. Mas cada um passou a cuidar de sua vida e Beto Guedes se tornou um compositor de enorme sucesso, muito requisitado.

A canção “Lumiar” é de Beto Guedes, uma bela música entre a tradição popular brasileira, o hino barroco de Minas Gerais e uma arrumação sonora que lembra os Beatles. Um trecho de sua poesia: “Anda vem jantar / Vem comer, vem beber / (...)/ E depois vem deitar no sereno/ Só pra poder ouvir e sonhar/ E depois passar a noite/ Caçando sapo, contando caso/ De como deve ser Lumiar/ (...)/ Levantar e fazer o café/ Passar o dia moendo cana, caçando lua/ (...)/ Clarear de vez Lumiar/ Estender o sol na varanda/ Até queimar/ Só pra não ter mais nada a temer”.

Essa é a natureza da cultura popular. Ela acontece, é bonita e é bem-sucedida quando o poema, a canção, o filme, a peça de teatro, o que for, servir para o destinatário se comportar diante dela e de nós todos de maneira iluminada. Ou com lumiar.

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Mais um falecimento fora de propósito. Faço minhas as sábias palavras de Ruth de Aquino: “Quando uma repórter como Glória Maria morre, todas as outras notícias submergem. Perdem a importância”.

O Globo, 04/02/2023