Heróis de José de Alencar e de Machado de Assis disputaram o coração dos leitores e a ilusão dos eleitores
A história do mundo tem sido contada a partir de um formato consagrado nesses últimos séculos por cientistas sociais de respeito. Mas enquanto esses pensadores enlouquecem tentando desvendar a crise entre indivíduo e sociedade, os brasileiros reivindicamos a originalidade absoluta de nossos costumes, hábitos e hinos que afirmam nossa diferença. Vivemos nossa abençoada vagabundagem cantando cantigas originais, organizando relações sociais só nossas, pensando livremente sobre o que for.
Gente importante, celebrada por aí, sempre defendeu esse caráter único com um sorriso mal disfarçado, saudando nossa divina originalidade. Autores como Gilberto Freyre (espécie de fundador metafísico da tendência), Mario e Oswald de Andrade, Heitor Villa-Lobos e Emiliano Di Cavalcanti, Jorge de Lima e Guimarães Rosa, Nelson e Glauber, apesar dos protestos ruidosos diante da injusta fome do povo, não tinham dúvida de que esse povo seria capaz de feitos extraordinários sem o lugar-comum narrativo absorvido e manifestado pelos outros povos.
Nessas horas me ocorre sempre o primeiro parágrafo da obra cintilante de um deles, Paulo Prado, que se refere ao Brasil como o território de uma população triste e melancólica em permanente anúncio de uma alegria construída por sua produção cultural. Ou como disse Euclides da Cunha sobre o poeta Castro Alves, “foi ele quem nos ensinou a metáfora, o estiramento das hipérboles, o vulcanismo da imagem e todos os exageros da palavra a espelharem impulsividade e desencadeamento de paixões que são essencialmente nativos”. E mais adiante na mesma conferência: “Penso que seremos em breve uma componente nova entre as forças cansadas da Humanidade”.
Do século XIX para o XX, heróis de José de Alencar e de Machado de Assis disputavam o coração dos leitores e a ilusão dos eleitores sobre o que melhor representava o Brasil. Enquanto Alencar criava situações típicas da colonização em que o valor dos locais era puro e por isso mesmo indiscutível, Machado reproduzia com ironia o talento destrutivo de situações que deviam estar ocorrendo em outro lugar, a revelar a existência de uma civilização irregular destinada a logo desaparecer.
Depois da ditadura militar e do fracasso social dos governos de José Sarney e Fernando Collor, tornou-se vitoriosa a ideia de que nada seria capaz de tirar o povo brasileiro da estrada por onde seguia. A estrada do alegre insucesso, da compulsiva festa de gargalhadas autocríticas, do riso apoiado numa cultura de televisão que derrotara todas as outras formas de conhecimento, cultivando e difundindo uma imagem do Brasil que, como seu povo, nunca tivéramos antes.
Perdemos assim o jeito de tentarmos nos explicar. Nos apropriamos de um sistema de análise em que buscamos no moderno uma saída para o vazio da ausência de futuro. O fim de toda a glória de nossa existência tornada mera presença sobre a face do corpo celeste, o planeta que nos coube.
Bolsonaro e seus cupinchas arruaceiros agravaram essa desmoralização desvalorizando nossa capacidade de descobrir novos rumos. Essa extrema direita de moleques se tornou entre nós uma esperança impossível. Assumiu-se então a ideia consolidada do fracasso da nação, só o milagre tirava nosso povo da merda conceitual em que ele se encontrava. E esse milagre não estava mais no valor da moeda, o milagre do Real se acabara assim que aquele dinheiro perdera a força nos shoppings de nossas cidades.
Só nos restou portanto sermos modernos para darmos uma explicação sobre por que não havíamos produzido um conjunto de ideias que nos recolocasse no rumo da realidade que ainda podíamos frequentar. Ser moderno é não ser ideológico, é preferir uma explicação que nos faça desabrochar mesmo que não explique nada. Porque ser moderno é não dar bola nenhuma pro futuro.