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Papai Fontes

 

Esperava o ano todo para visitar meu avô nas férias. Suas histórias inspiraram o filme ‘Joanna Francesa’

Meu avô por parte de mãe era um homem lindo, de uma elegância popular. O outro, o avô paterno, não cheguei a conhecer, ele morreu quando meu pai entrava na adolescência e acho que ainda nem sabia de minha mãe. Sei dele por retratos severos de uma rigorosa família de imigrantes portugueses de Trás-os-Montes, cujo destino era o Recife e acabara em Maceió, a comandar uma rede de ensino e educação. Um homem sério.

José Fontes era um espírito aventureiro, originário das margens do Rio São Francisco, onde cuidava de gado. Assim que isso se tornou possível, ele se livrou de bois, bezerros, cavalos e cavalinhos, foi viver na capital que ainda não era (claro!) o centro do circuito nacional de turismo que transforma o Nordeste em região de passeio e descanso. Muito bem-sucedido, o terreno onde hoje está instalado o estádio de futebol local lhe pertencera. Parece que minha mãe, que o adorava, foi uma das poucas pessoas da família a incentivar a operação que redundou na construção do Rei Pelé.

Nós o chamávamos de Papai Fontes, uma forma de a família inteira declarar amor e respeito por ele, que acabou perdendo tudo que tinha no naufrágio do açúcar que embarcara para o Sul, num navio estacionado ao longo do píer do cais de Maceió. Não sei se a tempestade que caíra do céu o apanhara no sossego da ignorância ou se havia decidido enfrentá-la para não faltar com a palavra junto aos compradores sulistas. O que se sabe é que acabou perdendo tudo que tinha nessa operação dramática com o açúcar, então seu último tesouro.

A família já andava meio aborrecida com ele, o episódio e a miséria em que ficara só fizeram agravar o descontentamento de todos com meu avô. Mesmo os que haviam ficado no São Francisco não o perdoaram pelo fracasso no embarque do açúcar.

Meu avô se mudara então para um bairro de pescadores de sururu, onde foi morar sozinho com Josefa, governanta da casa na época em que podia ter uma governanta. Proibida por minha avó de encontrar o pai em tais circunstâncias, minha mãe ia vê-lo secretamente e me levava como álibi para justificar seu sumiço por um dia quase inteiro. Esse era sempre um dia abençoado nas minhas viagens de férias para Maceió, valia a pena esperar por ele ansioso e tenso durante o ano todo. Quando a gente chegava lá, a boa Josefa botava uma velha cadeira de balanço na calçada, à porta da rua, e ia chorar com minha mãe sobre as necessidades da casa.

Meu avô se transformava, ficava excitado e às gargalhadas contando as histórias que havia vivido com minha avó e nossa família, além de fatos, palavras, situações com o povo com quem havia se relacionado durante o período. Quando ouvia de mim algum nome ou se lembrava, por alguma razão, de alguém que havíamos citado mesmo que de passagem, ele começava a rir e contava em voz alta o engraçado momento crítico que vivera ou vira acontecer num passado nada longínquo.

A última vez que vi Papai Fontes com vida foi em 1954, no velório de minha tia Creusa, aonde eu fora com meu pai já que minha mãe não conseguira tomar um avião, aos prantos no Rio de Janeiro desde que soubera da morte de sua irmã tão querida. Uns anos depois, escrevi o roteiro de “Joanna Francesa” a partir de tudo o que meu avô me havia contado. Mudara apenas o nome real dos personagens para mantê-los em sigilo.

A mãe doente de um político alagoano entretanto reconheceu a identidade de quase todo mundo. Ela lutou muito para que o filme não fosse exibido numa feira realizada no Rio de Janeiro a quem cedi sua pré-estreia. Meu pai também reconheceu a maior parte dos personagens e quase me implorava por mudanças no roteiro. No frigir dos ovos, nem ela, nem ele foram atendidos. Em “Joanna Francesa” se encontra pelo menos uma pequena parte das memórias de Papai Fontes.

O Globo, 18/12/2022