A esquerda brasileira, confrontada com a realidade, revela-se anacrônica e hipócrita. O presidente do Chile, o esquerdista Gabriel Boric, tem deixado explícita essa diferença ao assumir posições independentes em relação à Nicarágua, chamando claramente Daniel Ortega de ditador, e solidarizando-se com os opositores perseguidos e destituídos da nacionalidade nicaraguense.
O Brasil, por seu lado, recusou-se a assinar um documento da ONU em que 54 países repudiam as perseguições políticas, a falta de liberdade de imprensa e de livre pensamento e os abusos aos direitos humanos que caracterizam hoje a Nicarágua como uma ditadura.
Boric enviou pelo Twitter 'um abraço afetuoso' aos escritores Gioconda Belli e Sergio Ramírez, à ativista feminista Sofía Montenegro e ao jornalista Carlos Fernando Chamorro Barrios, todos perseguidos pela ditadura nicaraguense.
O escritor Sergio Ramírez, que participou ativamente da Revolução Sandinista, tendo sido o primeiro vice de Ortega depois do movimento, está exilado na Espanha. Ele participou no ano passado das comemorações dos 125 anos da Academia Brasileira de Letras e acusou o governo da Nicarágua de perseguir os intelectuais ao fechar a Academia Nicaraguense da Língua e várias instituições culturais.
Após sofrer críticas no plano internacional, e mesmo internamente, até no próprio PT, o governo apresentou na Organização das Nações Unidas (ONU) documento em que expressa, em linguagem cautelosa, preocupação com denúncias 'de graves violações de direitos humanos e de restrições ao espaço democrático' e colocou-se à disposição para acolher os dissidentes da ditadura, o que já havia sido feito pelo governo também de esquerda de Alberto Fernández na Argentina.
Dentro do PT, o membro do Diretório Nacional do partido Alberto Cantalice publicou tuítes classificando de ditaduras os governos de Venezuela, Cuba e Nicarágua, provocando reação de seus correligionários. Foi desqualificado como representante do PT e retirou Cubado rol das ditaduras, alegando que o país tem uma história de luta contra os Estados Unidos que deve ser levada em conta.
Não é preciso ser um direitista radical para constatar que Cuba é uma ditadura. Foi o que o Prêmio Nobel José Saramago fez após o governo cubano ter fuzilado três cidadãos que tentaram fugir da ilha. J o presidente Lula foi capaz de, em 2010, visitando Cuba, comparar um preso político que morreu devido a uma greve de fome a criminosos comuns.
Lula já disse que teve muito orgulho de abraçar Ortega na comemoração da Revolução Sandinista. A esquerda brasileira finge não notar que os guerrilheiros que derrotaram governos ditatoriais como os de Fulgencio Batista, em Cuba, ou Anastasio Somoza, na Nicarágua, tornaram-se ditadores tão sanguinários quanto os que derrubaram.
Também no campo econômico há posturas distintas. Enquanto Lulacritica a autonomia do Banco Central, culpando-a pela alta dos juros, o governo chileno exalta o mecanismo, que existe por lá há 33 anos. Comentando o livro 'Lessons from the land of high inflation', que afirma que os governos da América Latina estão questionando a independência dos seus bancos centrais, o ministro da Fazenda do Chile, Mario Marcel, declarou que 'o governo chileno valoriza muito os 33 anos de independência de seu Banco Central'. Ele ressalta que 'a atual administração vem colaborando com o Banco Central na luta contra a inflação, articulando uma das mais rigorosas consolidações fiscais do mundo, saindo de um déficit total de 8% do PIB em 2021 (sob um governo de direita) para um superávit de 1, 2% do PIB em 2022'.
Em termos ideológicos, o ministro Marcel foi direto: - Na minha opinião, apoiar a independência do Banco Central não é de maneira nenhuma distanciado de políticas progressistas, já que a inflação é a maior causa da desigualdade econômica.
"Esquerda brasileira finge não notar que os guerrilheiros que derrubaram ditaduras tornaram-se ditadores".