Há os que veem, no mar de camisas amarelas que estão por toda parte - nos estádios do Qatar como em nossas ruas - o símbolo de partido que concorreu nas últimas eleições. O que, perdão, não faz sentido, por serem as cores do Brasil?
31.05.1970, Santiago do Chile. Era o que não faltava por lá, exilados brasileiros tinha para todos os gostos. De Pernambuco, também. Como o engenheiro João Baltar (filho de Antônio Baltar, funcionário da ONU), o estatístico Ricardo Tavares, o economista Sérgio Buarque (irmão de Cristovam) ou minha irmã Maria Lia, depois diretora da Comunidade Econômica Europeia (e, hoje, casada com Jean Paul, administrador de hospitais em Paris). Não só eles. Também o almirante Aragão e antigos militares, sobretudo cabos e sargentos da Marinha. Líderes estudantis como Cezar Maia, Darcy Ribeiro, José Serra, o presidente da UNE Luiz Travassos (e sua mulher Marijane) além de Ferreira, líder dos ferroviários e diretor da Caixinha - formada por parte dos salários de todos os companheiros, que servia para garantir aluguel e supermercado aos muitos que continuavam chegando por lá. Ocorre que ia começar, no México, a Copa do Mundo. E os exilados (parte desses acima referidos) estavam em dúvida. Se deveriam naquele dia torcer pela seleção, como sempre aconteceu antes. Ou, ao contrário, melhor seria dar preferência aos interesses da Democracia, pisoteados pela Ditadura de 1964?, eis a questão. E acertaram que a questão seria decidida em Assembleia Geral, claro, era o estilo daquela gente. E daquele tempo. A decisão do grupo, então, foi torcer contra. Seja. Dá para entender.
Primeiro jogo, logo contra a Tchecoslováquia (que, hoje, nem existe mais, desde 1993 passando a ser dois países, República Tcheca e República de Eslováquia). Um governo socialista, o que ajudou muito a decisão da Assembleia. Na hora de começar o jogo, todos colados no radinho. E veio o primeiro gol dos inimigos, aos 11 minutos, de Ladislav Petrás. Com grande comemoração. Problema é que logo depois, aos 24, veio gol de Rivelino, 1 x 1. E alguns vivas perdidos se ouviram, entre os exilados. Até que logo em seguida, aos 59, veio o de Pelé, matou no peito e rede. Além, aos 61 e aos 81 minutos, mais dois de Jairzinho, 4 x 1. Festa retumbante, no local. Todos, em lágrimas, comemorando a pátria distante, saudades do Brasil, da fraternidade, do estar juntos como era em todos os jogos por aqui.
Ocorre que aquela festa estava em desacordo com a decisão da Assembleia Geral. Solução foi fazer outra, na hora, para decidir o que fazer para os próximos jogos. E a decisão, por unanimidade, foi esquecer a Ditadura e torcer pela seleção. O que se deu até os 4 x 1 contra a Itália, na partida final. Brasil, mais uma vez, campeão do mundo.
Lembro esse episódio ao ver o que acontece, hoje, com a seleção. Ainda com dois grupos nas ruas, se digladiando, como se a eleição não tivesse existido. Há os que veem, no mar de camisas amarelas que estão por toda parte - nos estádios do Qatar como em nossas ruas - o símbolo de partido que concorreu nas últimas eleições. O que, perdão, não faz sentido, por serem as cores do Brasil. Não é patrimônio de ninguém. São os mesmos que xingaram o querido Gilberto Gil, e sua mulher Flora, num estádio da Copa. Falta de educação. Ou, apenas, sectarismo. E há, de outro lado, os que torcem contra. Sobretudo porque Neymar, nosso melhor jogador, votou em Bolsonaro. Um amigo querido me confessou isso, inúteis os argumentos que tentei para demovê-lo. E até a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, em berros desvairados ao vê-lo machucado, ficou gritando, enlouquecida, 'já vai tarde', 'já vai tarde'. Prova, inclusive, de que essa louca (futebolisticamente falando, claro) não entende nada do jogo. Basta ver a falta que Neymar fez ao time, segunda passada.
Lembro texto de Miguel Torga que vale como um prenúncio 'Ontem eram ideias contra ideias. Hoje é este fraterno abraço a afirmar que acima das ideias estão os homens' (Diário Íntimo). Nessa linha, por mim, vejo essa Copa como uma benção. A chance de que os brasileiros voltem a estar mais juntos. Esquecendo a política. Imitando aqueles exilados confinados em Santiago do Chile. É uma oportunidade única, senhores, definindo melhor nosso futuro. Por isso, completando o hino de Miguel Gustavo, mais tarde vou gritar 'Pra frente Brasil, salve a seleção'.