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Volta ao velho normal

 

O Brasil precisa voltar à normalidade, e os militares são parte importante desse retorno. Não é aceitável que as aglomerações em frente aos quartéis sejam consideradas normais, ainda mais quando pedem medidas inconstitucionais, como a intervenção militar, para não permitir que o presidente eleito tome posse. São as novas 'vivandeiras alvoroçadas' que incentivavam os militares a ações golpistas.

Não ver o que está sendo gestado nesses movimentos ilegais, ou pela continuada ação de bloqueio em estradas pelo país, é ser cúmplice, no mínimo por leniência e inação. Bolsonaro levou os militares para o centro da política partidária, prometendo reintroduzi-los na vida nacional pela porta da frente, como se precisassem do aval de um político desqualificado, 'mau militar', para ter o respeito da população.

Acabou colocando os militares em situação delicada, sendo vistos pela população como privilegiados, como no caso da reforma da Previdência, ou como agentes políticos com lado, como acontece agora. Logo que assumiu, Bolsonaro fez questão de agradecer publicamente ao general Villas Bôas, em palavras cifradas: 'General Villas Bôas, o que nós conversamos ficará entre nós, o senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui'.

O que terão conversado os dois? O presidente recém-eleito poderia estar se referindo à nota do general no Twitter, na véspera do julgamento de um habeas corpus a favor de Lula que poderia tê-lo tirado da cadeia mais cedo, permitindo que disputasse a eleição presidencial de 2018.

Poderia também estar relembrando fato anterior, quando a então presidente Dilma Rousseff tentou decretar o Estado de Defesa para evitar seu impeachment, e os militares não a apoiaram. O fato é que a eleição de Bolsonaro foi considerada dentro da estratégia de volta por cima dos militares na vida política do país, e a partir daí o 'mau militar' passou a dar as cartas, sob a alegação de que ele, sim, tinha voto e sabia lidar com o povo.

Era comum nas discussões internas, quando havia um impasse com os militares em posições civis no entorno do presidente, alegar que ninguém ali entendia mais de política que ele. Conseguiu até demitir comandantes militares que não se alinhavam com seu projeto, sem haver crise militar. Envolveu os militares em ações polêmicas, como a produção de cloroquina durante a pandemia, ou colocando o general da ativa Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde, transferindo para a corporação as críticas às ações do governo.

Bolsonaro, ao contrário do que prometeu, levou os militares novamente para a senda golpista, abrindo um enorme fosso que os separa da sociedade civil organizada. A análise fria das manifestações histéricas dos que não aceitam a derrota nas urnas mostra que Bolsonaro está colhendo o que plantou, felizmente não a ponto de ter êxito.

A atuação dos militares na questão das urnas eletrônicas os colocou em confronto com a Justiça Eleitoral, fazendo com que atuassem como parte da disputa política. Chegou a ser patética a sugestão de que havia alguma coisa a descobrir depois da 'auditoria' que fizeram das urnas, mesmo que admitissem não ter descoberto nada.

No momento, diante das manifestações ilegais e antidemocráticas em frente aos quartéis, pedindo uma intervenção militar pela vitória de Lula na eleição presidencial, os militares atuam de maneira ambígua. Considerar que essas manifestações representam o direito de expressão livre dos cidadãos, e permitir que acampem em áreas que sempre foram consideradas de 'segurança nacional', é alimentar desvarios negacionistas.

Não tem sentido andar soltando nota oficial para discutir com as milícias digitais que acusam alguns generais de serem 'melancias', isto é, verdes por fora, vermelhos por dentro, porque seriam contrários às manifestações ilegais, ou simplesmente a favor da posse do presidente eleito, como acontece em todas as democracias.

Dar asas a essas elucubrações, como fez o general Braga Netto, candidato derrotado à vice-presidência, é perigoso. Diante de um bando de manifestantes que clamavam por uma intervenção militar, à portado Palácio da Alvorada, Braga Netto mandou uma mensagem: 'Tenham fé, é a única coisa que posso dizer agora'. Perdeu a chance de ficar calado, já que sua fala permite que muitos vejam embutidas nela intenções antidemocráticas.

Por essas e outras é que o futuro governo fará bem em nomear um ministro da Defesa civil, como era o plano original quando o ministério foi criado, no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso. Trata-se de destacar a prevalência do poder civil sobre o militar.

Os militares não podem julgar normais as aglomerações diante de quartéis pedindo que impeçam a posse do presidente eleito.

O Globo, 20/11/2022