Nunca havia acontecido nada parecido antes no Brasil: a cultura virou um item que só interessa ao mercado
Semana passada, contei aqui uma história, de hábito contada pelo grande cineasta Nelson Pereira dos Santos, uma história que terminava sempre com um desfile de boas notícias sobre eleições que estivéssemos vivendo naquele momento, como estas que vivemos hoje. Nelson faleceu em abril de 2018, para desgraça de nossa cultura e do cinema em geral, deixando entre os que ficaram o exemplo de um enorme cineasta, inigualável intelectual e um crítico bem-humoradíssimo da criação feita entre nós e que valia a pena existir.
Nas histórias (ou estórias) dele havia sempre heróis clássicos, desses que a gente vivia citando, mesmo sem saber exatamente de onde eram, o que haviam dito das mulheres, dos amigos e da vida, em que esquina e para que turma jogavam depois a conversa fora. Ninguém ousava fazer tais perguntas a Nelson, mas era isso o que a gente comentava no meio dos sussurros comprovados.
Agostinho de Hipona, por exemplo, era um filho de pai pagão e mãe cristã, vivia entre a Antiguidade e a Idade Média, autor da primeira autobiografia da literatura ocidental, um dos fundadores da sabedoria moderna. Mas Nelson dizia que apenas a fé não bastava, ela devia estar sempre acompanhada da razão iluminada pelo livre arbítrio humano, o único meio de se conhecer a verdade de verdade.
No último parágrafo da semana passada, arrisquei dizer o que Nelson talvez não dissesse.
O que eu queria dizer é que o cinema brasileiro, assim como o cinema em geral, vai bem mesmo assim, sem mim, sem ele e sem tantas outras gentes que faziam o retrato e deu zebra tudo aquilo. Não era assim que a gente estava percebendo o que ia se passar? Naquele cinemão em que tudo rangia, nossos filmes eram picotados para se tornarem nada pelos que escreviam, liam e pouco se importavam com o que acontecia.
Sempre enfrentamos todo tipo de poder político, presidentes, ministros, representantes do povo. Até com uma ditadura sanguinária o cinema brasileiro teve que negociar para existir. Mas aí, de repente, surge uma ideia radical de rompimento — que cada um ficasse mesmo com sua própria dor.
Sabendo que cada batalha vencida leva a uma nova guerra, assim como ouvimos com terror os Salmos da Vitória ecoando sobre nossos rios, bosques e cascatas, celebrando o vencedor em nome de uma decisão popular que não foi conduzida pelo povo.
Por um lado, você não tem como negociar até a autodestruição total, sobretudo se depende das estruturas do lado mais fraco. Por outro, nunca havia acontecido nada parecido antes no Brasil: a disparidade se estabeleceu e a cultura virou um item que só interessa ao mercado, à troca de valores comerciais.
As nossas ideias próprias e costumes, de onde estamos vindo e para onde vamos, não interessam mais a nenhum grupo econômico do país — quem nos comanda agora é a grande, sapeca e esperta estrutura de um Brasil novo. Tomara que não.