Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Purcina mergulhada em trevas

Purcina mergulhada em trevas

 

É um volume pequeno, mas impacta e comove. Atualíssimo. Dona Purcina, a Matriarca dos Loucos, da Oficina da Palavra de Teresina, foi escrito com dor por Cineas Santos, filho desta matriarca nordestina, acolhedora e generosa. Por que a produção do Norte e Nordeste não chega a São Paulo e ao Rio? Há um vácuo e perdemos momentos de emoção. Purcina, figura complexa, autoritária, doce e feita de certezas. Diz Cineas que ela, simples doceira do sertão, 'com sua lógica enviesada, encontrava solução para os problemas mais complexos'. Acrescenta: 'Para os muitos que a amavam foi extremamente doloroso vê-la no final da vida, ausente de si mesma, sequestrada pelo mal de Alzheimer'.

Este livro se encontra ao lado de quatro volumes que considero fundamentais no gênero. O Álbum Branco, em que Joan Didion estuda o luto, e Noites Azuis, em que a mesma autora fala do envelhecimento e da senilidade; De Profundis, de José Cardoso Pires que sofreu um AVC, com perda total de memória; e Perto das Trevas, de William Styron, que mergulhou em profunda crise de depressão.

Cineas, em linguagem seca, fala da própria mãe com angústia, mas sem melodrama. Os momentos de apagão e lucidez. O dia em que ela gritou por socorro, estava com uma onça dentro do quarto. Na verdade, ela via a própria figura refletida em um espelho. Cobriram todos espelhos da casa. Ou quando, logo após negar água a um moleque, ela aconselhou o filho a jamais deixar de dá-la a um sedento. Outra vez, Cineas chegou: 'A bênção dona Purcina! Ela: Deus lhe dê vergonha. Cineas: A senhora sabe que dia é hoje? Ela: Não sou dona de dia nenhum. Cineas: 20 de setembro, dona Purcina, dia do aniversário de seu filho mais querido. Ela: Que filho? Ele: Eu. Ela: E quem lhe disse que você é meu filho? Cineas: Quer dizer que resolveu me desfilhar? Sou um sem mãe, sem rumo, sem tudo, um maior abandonado? Quem vai querer me adotar? Ela: Deixe de bestagem, você não é meu filho, é meu irmão. E devia dar graças a Deus. Cineas: Irmão? E que ganho isso? Ela: Se fosse meu filho, era obrigado a cuidar de mim, sendo irmão, cuida se quiser'. Percorremos instante a instante a agonia de uma memória que mergulha nas trevas.

Purcina é cuidada pela filha. 'Cuidar de alguém com Alzheimer é meio caminho para a loucura', diz o filho. E a mãe pirava, inquieta, agressiva, ansiosa. Não reconhecia mais a própria casa. Colocava três vestidos, um sobre o outro, para que não a roubassem, tomava sorvete e cuspia, dizendo que estava quente demais. Médicos deveriam ler esse livro, poético, humano. Quando romperemos esta muralha invisível que atravessa o meio do Brasil? E o Alzheimer? Terá cura um dia?

Um dia, gritou por socorro, tinha uma onça no quarto. Na verdade, ela via sua imagem no espelho.

Folha de S. Paulo, 31/07/2022