Dias Gomes sabia inventar situações limites, a rigor sem saídas de caráter humano
Os filmes continuam nos ensinando coisas que, de outro jeito, nunca saberíamos. Na versão recente de “Top Gun: Maverick”, o personagem de Tom Cruise diz que quer descobrir quem ele é mesmo. Ed Harris não responde exatamente o que ele pergunta, mas lhe dá uma deixa troncha: “Gente como você está em vias de extinção”. Cada cabeça participando desse diálogo guarda um sentido para a resposta. E fervem de pensar.
De certo modo, é o mesmo efeito do recente livro organizado por Leandro Garcia Rodrigues, editado pela Francisco Alves em parceria com a Eduneal, magnífica editora do governo de Alagoas, reinventada pela turma do governador Renanzinho, hoje sob a administração de Paulo Dantas.
Aliás, ferver é o mais apropriado verbo para essa gente que tem procurado, através do conhecimento e de inspiração, pensar tudo de novo de um novo lugar do pensamento. Nem que para isso se valham de textos e diálogos já conhecidos, embora não consagrados.
Até o final do século XX pontificava entre nós, em um desses centros de pensamento à disposição de todos (no caso, a televisão), as ideias de um mestre da dramaturgia que, além de ser um bem-sucedido autor de teatro, acabou estabelecendo regras práticas para novas formas de organizar conflitos humanos que iam de divergências políticas a choques familiares. De modos de administrar uma comunidade valorizando os mais pobres, até saber escolher as fêmeas mais belas e saber administrá-las.
Estou me referindo a Alfredo Dias Gomes e sua sabedoria político-administrativa, uma certa capacidade invicta de vencer todos os conflitos. No papel dos textos e na vida real.
Nunca tivemos um herói tão perfeitamente capaz de nos iludir nos textos que, uma vez montados, se tornavam exemplares de um fim que considerávamos irreversível, milagroso e indiscutível. Ao mesmo tempo que tratávamos como uma ilusão, fruto de nosso desejo único, a invadir com o poder de nossa vontade decisiva as dificuldades inéditas dos conflitos humanos que ele inventava para nós. Dias Gomes sabia inventar situações limites, a rigor sem saídas de caráter humano, só para nos colocar diante de alternativas das quais duvidássemos. Quando víamos a luz por trás das portas trancadas, já era tarde demais, só nos restava a pena de nós mesmos, uma piedade culpada.
O cinema brasileiro caminhava então em outra direção. Em vez de propor soluções para nossos problemas daqueles tempos, preferíamos descobrir, na origem deles, os momentos de nossos traumas. Seus geradores. Dias Gomes e seus companheiros da televisão procuravam, através de bem articuladas peças bem descritas, alimentar suas ideias daquele momento com as ideias novas que surgiam aos borbotões.
Um dos conflitos em que este estado de coisas mais se manifestou, ao longo daqueles anos, foi o que opôs os filmes “Deus e o diabo na terra do sol”, de Glauber Rocha, e “O pagador de promessas”, escrito por Dias Gomes, dirigido por Anselmo Duarte e produzido por Oswaldo Massaini, em torno do qual se formaria uma espécie de Cinema Novo paulistano. O Cinema Novo se preparava para levar “Os cafajestes”, do recém desembarcado Ruy Guerra, para o Festival de Cannes, no Mediterrâneo francês, quando o Itamaraty nos frustrou escolhendo “O pagador de promessas” para nos representar naquele que sempre foi, e continua sendo, o mais importante festival internacional de cinema.
O “fuxico” gerado pela escolha do Itamaraty para Cannes só não foi maior porque, naquele ano, tivemos “Vidas secas” e “Deus e o diabo na terra do sol” revelando pelo mundo afora, com o apoio do governo brasileiro, o novo cinema do país e o Cinema Novo, sempre acompanhados de outros filmes de muita qualidade, repercutindo igualmente nos certames internacionais de filmes, como Berlim, Veneza, Nova York, Moscou etc.