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Ainda o golpe

 

O fantasma de um golpe domina as conversas não apenas dos cidadãos comuns, mas ainda mais as dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Não foi aleatória a escolha do objetivo da terceira rodada de auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), que se dedicou a avaliar se o TSE estabeleceu mecanismo de gestão de riscos adequado para garantir proteção aos processos críticos do  sistema eleitoral, de forma a evitar a interrupção da normalidade das eleições em caso de incidentes graves, falhas ou desastres, ou assegurar a sua retomada em tempo hábil a não prejudicar o resultado das eleições.

O mais recente temor das autoridades que lidam com os processos eleitorais é a possibilidade de um ataque cibernético inviabilizar a remessa dos resultados de uma ou várias regiões do país para a central do TSE em Brasília. Na eleição municipal de 2020, houve uma falha no sistema que atrasou em 3 horas a divulgação dos dados. Foi feito um esforço extremo para que fosse possível anunciar os primeiros resultados ainda no dia da eleição, o que foi feito somente às 23h55m.

O ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo e do TSE, coordenava os trabalhos na ocasião, e mostrou-se descontente com os problemas que levaram ao atraso, mas garantiu que os resultados foram dados com toda a segurança.

A centralização da contagem de votos foi uma recomendação da Polícia Federal para dar mais segurança ao sistema, o acúmulo de dados provocou um retardo na totalização. O atraso decorreu provavelmente do aumento das medidas de segurança para o sistema, mas houve também uma falha em um dos processadores.  

Embora houvesse uma onda de boatos sobre as razões do atraso, não aconteceu nenhuma crise política na ocasião, o que poderia ser diferente nas próximas eleições, pelo clima de insegurança que o próprio governo alimenta. A propósito de teorias conspiratórias que fazem parte hoje do submundo da atuação politica nos meios digitais,  o sociólogo Bernardo Sorj, diretor do Centro Edelstein de Políticas Sociais e da Plataforma Democrática escreve um artigo na edição em português do “Journal of Democracy” onde analisa o porquê do sucesso das teorias conspiratórias, uma das ameaças à democracia nos dias que correm.

“O que nos interessa ressaltar é o enorme atrativo que as teorias conspiratórias possuem para diversos setores da população, em um duplo movimento que os transforma em vítimas e ao mesmo tempo os empodera. Transforma-os em vítimas, pois os mais diversos malestares vividos (epidemias, crises econômicas, novos costumes, desemprego) pelas pessoas ou grupos seriam produtos de uma ação intencional de outros grupos identificados como inimigos. E os empodera, pois oferece às ‘vítimas’ um mapa simplificado do mundo e do culpado a ser combatido”. Ele entende que o sucesso das teorias conspiratórias se sustenta em três pilares: 1) na tendência a pensar que por trás dos eventos existe uma intencionalidade, 2) a produção de narrativas que identificam esta intencionalidade em forças ocultas malignas, 3) um contexto social que predispõe os indivíduos a acreditarem em teorias conspiratórias e a se sentirem empoderados por meio delas.

Dentro desse clima de desconfiança generalizada fomentado pelo governo, a proposta do ministro da Defesa, General Paulo Sérgio, de votação paralela em cédula de papel, chega a ser ridícula. Cédula de papel já é superada, técnica e juridicamente, não existe mais essa discussão, pois o Congresso já a desaprovou, confirmando a validade das urnas eletrônicas. E seria fácil criar confusão com esse sistema. Bastaria que muitos, numa atuação coordenada, votassem em um candidato na urna e em outro no papel. Como se controlaria isso? Estaria comprovada a possibilidade de fraude nas urnas eletrônicas?

As Forças Armadas estão exercendo papel de auxiliar do presidente da República, deixando as funções de Estado. Têm que sair de fininho dessa discussão, que só está desmoralizando a instituição. O TCU, órgão mais credenciado para esta aferição técnica, que faz parte de uma organização internacional de fiscalização e verificação, já está na terceira inspeção, sugeriu algumas mudanças pontuais e aprovou todo o processo.

Fica clara a intenção política dessa manobra, e o Exército não pode ter intenções políticas. Tem que manter a ordem e não incentivar quem quer fazer desordem. É um perigo continuar nessa história, porque o ministério da Defesa não pode aceitar qualquer insinuação a respeito de um golpe.

O Globo, 17/07/2022