Reagimos mal a novidades imprevistas. Se o futuro não se dá como o concebíamos, preferimos negá-lo
Foi um amigo, o jornalista Zevi Ghivelder, quem me lembrou do aniversário próximo da estreia de “The jazz singer”, o primeiro filme sonoro na história do cinema, lançado em Nova York, 95 anos atrás. Um musical, como não podia deixar de ser num país que sempre cultivou a música popular como rica manifestação de seu povo, uma marca plural e maior de sua cultura. De cineastas e críticos a jornalistas especializados e espectadores regulares, quase todos os que estiveram presentes à noite de gala condenaram a experiência. Diziam que aquilo não era cinema.
Na história do cinema, o som foi o primeiro elemento que fez do filme que o usava um estranho no ninho, como depois a cor e a tela larga, cinemascope e 3D, televisão e DVD, os avanços tecnológicos que tornavam o filme objeto de transformação permanente, um espetáculo que nunca mais seria o mesmo. No entanto o fundamental em cada título continuava sendo os arranjos dramatúrgicos de diferentes visões de mundo ou ideologias, mesmo que a cada novidade tecnológica um tipo de público afirmasse sempre não ser mais cinema a invenção que mudava a aparência do filme. E nenhum fã se dava conta de que Larry Parks, que dublara Al Jolson em “Sonhos dourados” (The Jolson Story), fora banido de Hollywood vítima de perseguição macartista.
Ousado em “O cantor de jazz” era o uso de caracterizações em “black face”, uma tradição que fora revolucionária no teatro americano desde o século XIX. Usado para por em cena uma população desprezada pelas elites americanas, uma população ainda escravizada ou apenas recém liberta, o choque da presença de personagens negros era amenizado pelos rostos de atores brancos pintados de preto, o que Al Jolson reproduzia no filme. Mais tarde o ator, que era judeu, vítima de outro tipo de discriminação, foi acusado de ser racista por ter usado “black face” em “The jazz ainger”.
Não gostamos, não temos prazer nenhum no registro do passado que nos nega a possibilidade de um futuro como aquele que imaginávamos. Reagimos mal a novidades imprevistas. Se o futuro não se dá como o havíamos concebido, dentro de regras que nos foram contemporâneas, preferimos negá-lo ou simplesmente ignorá-lo. Uma espécie de compromisso político com a morte, contra o elogio da vida e suas surpresas darwinianas, frutos de processos às vezes ainda desconhecidos. Ou frutos do acaso. Ser de direita é, antes de tudo, se posicionar contra a vida, contra o que vem por aí.
O fato é que o cinema se fortaleceu com as novidades tecnológicas dos últimos cem anos. Agora é a vez do streaming, plataforma amaldiçoada até por alguns dos mais admiráveis praticantes do audiovisual, como Martin Scorsese.
O streaming está permitindo a produção de mais filmes, inclusive filmes locais. E os está exibindo em lares com aparelhos de televisão cada vez mais poderosos, para um público além do familiar. Se cada país fabricar uma legislação que proteja sua própria produção, como já fizeram países tão distintos como a França, a China, o Egito ou a Coreia do Sul, a economia criativa de cada um deles será capaz de enfrentar o gosto bélico de Hollywood, sua atração por tudo que dá certo pelo planeta afora. O streaming pode se tornar uma luz, responsável por filmes que nos façam conhecer melhor a nós mesmos.
Diz a Bíblia que Jacob depositou uma pedra muito pesada sobre o túmulo de Raquel, sua mulher, e, depois de milênios, ela ainda está lá. Quem for a Los Angeles, faça uma visita aos restos mortais de Al Jolson, o cantor de jazz. Encontrará sobre seu túmulo uma pedra de mármore, tão pesada e eterna quanto a de Raquel.