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Como fazer

 

Não só devemos nos orgulhar dessa variada multiplicidade, como também nos esforçar para que ela se torne o caráter dominante do país

O Festival de Cannes desse ano se encerrou essa semana com a vitória de um filme sueco. Em 2019, o cinema brasileiro recebera grande destaque e prêmios com “Bacurau”, de Kleber Mendonça, e “A vida invisível”, de Karim Aïnouz. Mas há 60 anos atrás, ganharíamos a Palma de Ouro, o prêmio máximo do festival, com “O pagador de promessas”, realizado por Anselmo Duarte com produção de Oswaldo Massaini. Entre as duas datas, nossos filmes seguiram sendo exibidos em Cannes e em outros festivais internacionais, ganhando prêmios e virando sucessos pelo mundo afora. Mas nada se compara à Palma de Ouro.

Escrito a partir de uma peça de teatro do dramaturgo Alfredo Dias Gomes, um importante autor de novelas no apogeu da TV Globo, “O pagador de promessas” sofreu alguma injustiça no Brasil. Antes de Cannes, porque se batalhava aqui pelo reconhecimento do Cinema Novo, cujos praticantes e admiradores torciam pela indicação de outro filme, “Os cafajestes”, de Ruy Guerra, primeira obra brasileira do moçambicano que trazia para o movimento as novidades do cinema europeu contemporâneo. Quando o comitê do Itamaraty escolheu o filme de Anselmo Duarte, houve um sentimento de decepção, mesmo entre aqueles que ainda não o haviam visto.

Mais tarde, quando o filme ganhou a Palma de Ouro, a decepção se tornou uma angustiante negação do movimento, do qual Anselmo e os paulistas em geral, perseguindo os princípios da Vera Cruz, sempre quiseram distância. As fofocas tumultuaram o ambiente. Um líder destacado de nosso cinema no Rio de Janeiro declarou a um jornal carioca que François Truffaut, membro do Júri de Cannes, havia ajudado a escolher “O pagador de promessas” achando que premiava o Cinema Novo que conhecera em viagem recente à antiga capital. Anselmo aceitou infantilmente a provocação e impediu até que chegássemos ao vitorioso produtor Oswaldo Massaini para saudá-lo.

Àquela altura, inventávamos um novo cinema, estávamos a lançar manifestos e fazer nossos primeiros filmes sobre um Brasil nada distante do país do “Pagador”. Um país miserável, injusto,desigual, violento, triste. Um Brasil que nos fazia sofrer e que o público não tinha lá muita vontade de contemplar. Como observava Gustavo Dahl, a principal característica do Cinema Novo era a de que tínhamos um projeto, e, como escrevera Paulo Emílio Salles Gomes, “ter projeto é ter caráter”. Ainda por cima porque agora, com a chanchada exilada na televisão e a Vera Cruz quebrada, não pretendíamos ocupar o lugar de ninguém.

Acreditávamos num futuro de perfeita solidariedade universal, capaz de envolver a humanidade inteira. Eventos como os que filmávamos, muito pouco diferentes da história do Zé do Burro querendo entrar com sua cruz até o altar, precisavam se irradiar pelo país ocupando os espaços de onde podiam iluminar nosso povo e o que ele queria da vida. E tudo isso fazia parte de um novo cinema renovado.

No próximo mês de outubro, vamos comemorar os 95 anos do primeiro filme sonoro. “The jazz singer” foi apresentado pela primeira vez numa grande sala em Nova York e todos as pessoas ligadas ao cinema (de críticos e cineastas a espectadores e cinéfilos) foram quase unânimes em dizer que aquilo não era cinema, mas outra coisa que usava aquele disfarce. Hoje, o cinema mudo não existe mais, em lugar nenhum do mundo. O que existe é só “O cantor de jazz”, em todo o seu esplendor do cinema que nós todos amamos.

Fomos criados e nos desenvolvemos como nação na soma de todas as nossas diferenças, criadores de sucessos e fracassos. Não só devemos nos orgulhar dessa variada multiplicidade, como também nos esforçar para que ela se torne o caráter dominante do país. Se nãofizermos bons filmes,ao menos sabemos como fazê-los.

O Globo, 05/06/2022