A posse do neurocirurgião Paulo Niemeyer Filho na Academia Brasileira de Letras, “um médico que trabalha pela vida” em sua própria definição, transformou-se em defesa calorosa da ciência, e numa tomada de posição institucional “a favor das pesquisas científicas, das vacinas e das artes”. A posse de Niemeyer deu sequência a uma tradição da ABL, que já teve em seus quadros nomes como Miguel Couto, Carlos Chagas Filho e Ivo Pitangui, entre outros.
A academia sempre se posicionou em defesa de valores civilizatórios, ressaltou Paulo Niemeyer, lembrando que, no inicio do século XX, o grande sanitarista Oswaldo Cruz comandou, no Rio de Janeiro, a campanha contra a peste, a febre amarela e o sarampo, e teve que enfrentar uma reação popular que ficou conhecida como a Revolta da Vacina.
“O movimento foi tão politizado como o de agora, e quase resultou na queda do governo do presidente Rodrigues Alves. A razão estava com Oswaldo Cruz, que se imortalizou duplamente: pela vitória sanitária, eliminando o flagelo que corroía a nação, e também pelo reconhecimento desta Academia, que o elegeu para a cadeira de número 5. Oswaldo Cruz foi dos maiores heróis brasileiros”.
Na mesma linha, Niemeyer se referiu à criação do Sistema Único de Saúde (SUS) “fator transformador da sociedade brasileira e talvez a maior e mais importante medida de inclusão social do mundo”. O novo acadêmico denunciou “o radicalismo, a intolerância, um mundo estranho que entrou por nossas portas, complacente com a corrupção, combatendo a cultura, a educação, a democracia e também as pesquisas científicas, muitas paralisadas por cortes de verbas”. E acrescentou ironicamente: “Num mundo cada vez mais competitivo, o boicote à ciência mostra como planejamos bem o fracasso do nosso futuro”.
Coube ao jurista e acadêmico Joaquim Falcão, primeiro-secretário da ABL, no discurso de recepção, pedir palmas para saudar “médicos, médicas, cientistas, enfermeiros e enfermeiras, profissionais da saúde, fisioterapeutas, aqui presentes: vocês foram luz da esperança contra a mentira, a chacota, o desprezo, a politização da pandemia do Covid”.
Como exemplo de que “vivemos tempos em que valores se invertem e instituições se desfiguram, tempos de crescente egoísmo”, Falcão criticou o que chamou de “afronta maior”, o veto presidencial ao altruísmo social praticado e simbolizado pela médica psiquiatra drª. Nise da Silveira, aclamada pelo Congresso Nacional para ser inscrita no Panteão de Heróis e Heroínas da Pátria.
O primeiro-secretário da ABL exaltou a revolução feita pelo trabalho da dra. Nise no tratamento terapêutico na psiquiatria, que revelou virtuosos artistas como Arthur Bispo do Rosário, “cuja vocação se liberou com sua inovação”. Nossos grandes médicos, especialmente após seu heroísmo pós-pandemia, não merecem vetos arbitrários, afirmou Joaquim Falcão, para quem a dra. Nise da Silveira “ficará sempre no heroísmo do Panteão da Nação”.
O veto presidencial à inclusão da dra. Nise da Silveira no Panteão dos Heróis e Heroínas do Brasil já fora tratado na sessão do dia anterior da Academia Brasileira de Letras (ABL), quando o professor e acadêmico Arnaldo Niskier o criticou, exaltando a figura da médica. Na próxima semana, o ex-presidente da Casa, escritor e filósofo Marco Luchesi, parceiro da médica na Casa das Palmeiras, o “pequeno território livre” de reabilitação mental através de terapias ocupacionais, iniciativa pioneira de Nise da Silveira que inovou a moderna psiquiatria, fará uma palestra sobre seu relacionamento com ela e sua importância no tratamento psiquiátrico, reconhecida internacionalmente, ao contrário da alegação oficial para vetar a inclusão de seu nome no Panteão.
Voltando à sessão de posse na ABL, coube a Joaquim Falcão retomar o veio aberto por Paulo Niemeyer, ressaltando que “a saúde, a cultura, a ciência e a educação não devem estar a mercê do discurso antidemocrático e irrefletido dos cortes do déficit público”. Falcão ressaltou que “não se trata de ser contra ou a favor do controle fiscal. Trata-se de escolher com base em que urgências, valores e fins se corta esta ou aquela despesa”. Para ele, “é a infraestrutura do Estado democrático de direito que aqui está em jogo. Da liberdade e da igualdade”.
O jurista lamentou que estejamos “sem projeto democrático, minimamente solidário do Brasil para com o Brasil. Um Brasil a longo prazo”. Encerrou seu discurso afirmando que “é na luz do humanismo do Dr. Paulo Niemeyer, dos heróis profissionais da saúde, aqui presentes, e de todos que trabalham a favor de uma visão de Brasil onde mora a esperança da guia por dias melhores”.