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Aparência de normalidade

 

Quando era deputado federal, eleito por um nicho de eleitores essencialmente militares, Jair Bolsonaro não valia uma nota de três reais na vida pública. Ninguém ligou quando elogiou o torturador coronel Brilhante Ustra, nem quando disse que a deputada petista Maria do Rosário não merecia ser estuprada por ser muito feia. Ao contrário, alguns parlamentares diziam que ele era muito afável no trato pessoal e que aquela radicalização era apenas uma maneira de chamar atenção sobre si para garantir os votos do eleitorado cativo.

 

Agora estão cometendo o mesmo erro ao considerar que Bolsonaro indultou o deputado federal Daniel Silveira apenas para chamar a atenção e manter-se no foco da opinião pública. No entanto, assim como Bolsonaro passou a ser valorizado pelos votos que o levaram à Presidência da República, a maioria sem ter a ver com suas eventuais qualidades, mas com os defeitos do PT, também o deputado-policial está sendo guindado a postos relevantes na Câmara a que não teria acesso em tempos normais, como membro titular da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e vice-presidente da Comissão de Segurança Pública.

Ele serve de pretexto para que os ataques às instituições democráticas tenham uma aparência de normalidade. Seriam demonstrações de “liberdade de expressão”, que precisam ser defendidas pelos “democratas”. O ex-presidente Lula perdeu uma chance de se colocar como um candidato a presidente que trata com seriedade questões institucionais. A crítica que fez a Bolsonaro chegou com atraso e muito pouco conteúdo.

Evidentemente, Lula está cuidadoso com o tema, pois não quer abrir mão da “graça” que todo presidente pode conceder. Tergiversou, fez uma piadinha, um trocadilho com a “graça” sem convicção de sua crítica. Na verdade, não fez uma crítica contundente para o cerne político do que está acontecendo, que ele sabe muito bem qual é. Lula não quis enfrentar a realidade: a tentativa de criar um clima político propício à denúncia de fraude nas eleições. Alega que decidiu não dar exposição a Bolsonaro, que quer apenas chamar a atenção sobre si e continuar na mídia.

Não só isso. Lula tem de começar a defender as urnas eletrônicas, porque é aí que está o problema; é por aí que Bolsonaro quer invalidar as eleições, caso perca. O socorro do bilionário Elon Musk ao comprar o Twitter, alegando que precisa ser o mais amplo possível para que todas as manifestações sociais sejam abrigadas, é um bálsamo para políticos radicais que seguem Bolsonaro.

Daniel Silveira é um pretexto para a tentativa de golpe que vem sendo preparada, não o motivo para uma crise institucional. Ninguém está preocupado com a liberdade de expressão, mas com a possibilidade de ser preso por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Há uma mistura de interesses unindo o Centrão e os radicais bolsonaristas. Silveira não é um Márcio Moreira Alves, usado pelos militares como pretexto para decretar o AI-5. Marcito era um jornalista importante, que se elegeu deputado federal por causa de sua atuação em defesa da democracia, mas fez um discurso sonhador, pedindo que as moças não dançassem com militares em sinal de protesto. Foi o que bastou para que o golpe dentro do golpe acontecesse.

A solenidade de ontem no Palácio do Planalto, em favor da “liberdade de expressão”, que teve Silveira como protagonista, é prova de que Bolsonaro não mede esforços para criar o ambiente radicalizado que possa levar à confrontação diante de um resultado negativo para ele nas urnas. O apoio ao deputado é simbólico para arruaceiros e marginais que chegaram ao Congresso ou ao entorno do governo na onda bolsonarista de 2018, e sua punição pelo STF não mereceria maiores preocupações, se não fosse um bom pretexto para confrontar o tribunal constitucional às vésperas da eleição que Bolsonaro quer marcar como fraudulentas.

O Globo, 28/04/2022