Há muitas razões técnicas para invalidar a graça presidencial dada ao deputado federal Daniel Silveira, a começar pelo fato de que, como lembra o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Ayres Britto, promover ataques aos Poderes da República é insuscetível de indulto por ferir cláusula pétrea da Constituição.
Assim como apontado pelo professor e jurista Aurélio Wander Bastos, o artigo citado no decreto presidencial do Código de Processo Penal fala em “graça”, termo que não está na Constituição, o que significa que deveria haver referência a uma necessária ou eventual correspondência de identidade jurídica entre “graça” e indulto, ou comutação de pena.
Mas a questão, desde o primeiro momento, é mais política que jurídica, e, a cada novo fato que surge, mais o teor político fica enfatizado. O presidente Bolsonaro está atrás de qualquer pretexto para exacerbar os sentimentos antipetistas de seus seguidores, fazendo a ligação direta entre decisões do STF, ou declarações de seus integrantes, com um suposto apoio a temas esquerdistas.
Tome-se como exemplo seu pronunciamento de não cumprir a decisão sobre o marco temporal para demarcação das terras indígenas se a tese vitoriosa no Supremo for contrária à sua (e à dos ruralistas) de que somente os indígenas que já estivessem na região até a promulgação da Constituição de 1988 podem reivindicar a posse de terras.
Também as críticas do ministro do STF Luís Roberto Barroso à tentativa de Bolsonaro de levar os militares a participar do “varejo da política”, como no caso das urnas eletrônicas, foram aproveitadas para tentar criar uma crise entre as duas instituições. O local em que o ministro Barroso fez as críticas — uma live para uma universidade estrangeira — é inadequado. Embora tenha ressalvado a credibilidade e o apoio dos militares à democracia, não deveria ter abordado o assunto de forma tão direta numa mesa de debates acadêmicos.
A ideia de convidar as Forças Armadas para participar do programa de transparência das urnas eleitorais foi boa, para tentar neutralizar a campanha de Bolsonaro contra o voto eletrônico, mas acho que ele não imaginava que os militares dessa comissão fossem tomar partido da opinião de Bolsonaro, que parece ser o que está acontecendo. O ministro Barroso tem razão quando, mais uma vez, defende as urnas e a lisura do processo, que Bolsonaro está empenhado em desmoralizar.
É uma luta política do presidente, que apoiará uma reclamação de fraude caso perca as eleições e, para isso, está preparando o terreno político. O Ministério da Defesa deveria ter respondido a Barroso, porque houve uma acusação, mas deu pretexto para que os militares que trabalham no governo, como os generais-ministros Augusto Heleno, do GSI, e Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria-Geral da Presidência, começassem a fazer campanha contra o ministro do STF. É mais uma etapa dessa disputa política que estamos vendo e desembocará na eleição.
O governo quer fazer com que cada vez mais as pessoas desconfiem do STF e, consequentemente, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e das urnas eletrônicas. O relator do marco temporal no Supremo é o ministro Edson Fachin, atual presidente do TSE, que já votou contra o governo. O ministro Barroso é o ex-presidente do TSE que conseguiu neutralizar momentaneamente a campanha de Bolsonaro contra as urnas eletrônicas, e o ministro Alexandre de Moraes o presidirá durante a eleição.
Induzir a opinião pública a considerar os ministros do STF suspeitos de ser tendenciosos a favor do ex-presidente Lula é a tática de Bolsonaro para tentar mobilizar os militares para sua luta política contra a esquerda. A disputa entre a extrema esquerda de Jean-Luc Mélenchon e a extrema direita de Marine Le Pen na França levou à vitória do centrista Emmanuel Macron, que disse que governará para todos, mesmo os que votaram nele apenas para barrar Le Pen no segundo turno ou se recusaram a votar.
Para desradicalizar a disputa presidencial deste ano, precisaríamos de um (a) candidato (a) que desatasse o nó da polarização.