O que acontece entre Ucrânia e Rússia não pode ser julgado apenas pelo número de perdas de lado a lado
A invenção da imprensa, no século XV, mudou o mundo. Sobretudo porque o conhecimento passou a ficar ao alcance de todos, independente do nível cultural, social ou financeiro de cada um. A imprensa acabou sendo crucial para a multiplicação de tendências surgidas com o Renascimento e o fim político do domínio da Igreja sobre a humanidade civil. Curiosamente, o Papa Pio II, ao ser posto diante da invenção, ficou encantado com ela e a saudou como instrumento futuro de registro e cobrança das benesses da Igreja a seus fiéis.
Mas quem ficou ligado para sempre à invenção da imprensa, além de Johannes Gutemberg, seu criador técnico, foi Martinho Lutero que produziu o primeiro livro impresso, a Bíblia traduzida do latim chique para um alemão popular. Essa Bíblia de Lutero, com 641 páginas, seria inspiradora e guia da Reforma Protestante, um dos acontecimentos mais importantes do Renascimento que, por enquanto, talvez seja o momento mais radical na transformação da humanidade no que ela é hoje.
Esse pequeno conto acima, sobre a imprensa e o que ela provocou de mudança no mundo do conhecimento, serve também para ilustrar o que tem se passado nas relações humanas desde o nascimento da cultura digital. Nunca mais fomos os mesmos. E, agora, quando uma guerra pouco convencional explode na Europa, podemos avaliar o que se passa de um modo inédito entre os envolvidos.
Não se trata mais de só saber quem está ganhando a guerra e quem a vencerá, no final das contas. Não se trata mais de avaliar o número de batalhas vitoriosas, ou de simplesmente saber como julgá-las vencidas ou perdidas, para estabelecer um placar que nos permita reconhecer quem tem mais chances de ganhá-la no final do jogo no tempo convencional. É claro que o embate entre Rússia e Ucrânia pode ser avaliado ainda hoje e agora mesmo, mas na verdade só ousamos fazê-lo relativamente. As regras da guerra talvez sejam mais ou menos as mesmas. Mas aferir o resultado delas já é outra ciência.
Assim como a invenção da imprensa foi parte de uma mudança radical do espírito humano, capaz de orientar seu século e o que veio depois dele em uma inesperada direção, vivemos hoje um momento semelhante de compreensão da realidade. O que acontece no campo de batalha entre Ucrânia e Rússia não pode ser julgado apenas pelo número de perdas de lado a lado. Não é mais o número de baixas que determina a vitória final, não são mais as baixas que servirão como critério de julgamento do resultado da partida.
A Rússia pode destruir fisicamente a Ucrânia, acabar com todos os móveis e imóveis militares ou não do inimigo, que ainda restará aos defensores do aparente derrotado o direito de se proclamar vencedor de uma outra ideia de ser na História, de estar no mundo em defesa de outro modo de vida, revelado por uma permanente e extensa difusão audiovisual que seus principais representantes aprenderam a produzir durante a própria guerra. E isso, além do valor do pensamento, graças ao que esses ucranianos aprenderam a fazer através dos meios de difusão audiovisual.
Parece que o “livro” mais antigo da humanidade é o “I Ching”, o Livro das Mutações, que com cerca de 3 mil anos de existência, se baseia na mudança contínua das forças cósmicas do yin e do yang, a sombra e a luz. Como não havia ainda a imprensa, o “I Ching” não teve edições multiplicadas, mas seu sentido e valor nunca foi totalmente dispensado. Até o que a imprensa acabou por nos proporcionar, foi esse o modo de pensar o mundo de todas as culturas intermediárias.
É mais ou menos o que pode acontecer com certas visões de mundo divulgadas pelo mundo da difusão audiovisual e da cultura digital. O registro visual da internet não vai desaparecer nunca mais. Ou, se preferirmos, o filme da internet.