Ele foi o mestre de um cinema que outros haviam tentado, mas ninguém o fizera tão bem quanto ele
Eu ainda estava no ginásio do Colégio Santo Inácio quando me aproximei de Arnaldo Jabor, tentando conquistar um papel num espetáculo colegial que ele produzia e dirigia. Tratava-se da dramatização de um daqueles poemas do romantismo brasileiro sobre os paulistas que haviam conquistado o interior do país. Lá para as tantas, uma febre assolava os bravos conquistadores e duas ou três vítimas passavam no fundo do palco, se arrastando a pedir água. Eu seria uma delas. Mas, sofrendo o que considerava um agressivo desinteresse por meu talento dramático, não passei da estreia. Abandonei o espetáculo e pedi demissão do grupo. Não sei exatamente como, mas o episódio acabou nos aproximando, ficamos amigos para sempre graças a meu fracasso dramático.
Fomos juntos para a PUC, onde ambos demos preferência às atividades político estudantis, mais emocionantes e úteis ao país que queríamos construir. Eu era o redator-chefe de O Metropolitano, o jornal da União Metropolitana dos Estudantes (UME), que era dirigido pelo futuro deputado Paulo Alberto Monteiro de Barros (o cronista Artur da Távola), nomeado pelo presidente da entidade Alfredo Marques Viana. Chamei Arnaldo para se ocupar da página de arte do jornal e nunca mais nos separamos.
O que me levou pro cinema foi meu amor pelos filmes que via e livros que lia, minha formação de cinéfilo. Mas quem me convenceu de que podíamos ser cineastas e me guiou nessa direção foi Davi Neves, quando se mudou para a Rua da Matriz, onde eu morava. Enchi os olhos e o coração de Arnaldo com essa hipótese, acabei convencendo-o de que isso era possível. Ele começou como assistente de direção de Leon Hirszman e técnico de som de “Ganga Zumba”, meu primeiro longa-metragem. Até fazer o curta “O circo” e seu primeiro longa,“Opinião Pública”, uma sapientíssima versão do cinema-verdade dos franceses. E não parou mais de fazer cinema, se tornando um exemplo de rumo pessoal e único no Cinema Novo.
Ele havia começado a fazer seus filmes quando o Cinema Novo se impusera como um modo original de fazê-los. Sendo estrela de uma segunda dentição do movimento, absorvera em seus filmes a ideia de uma cultura que já tinha sido levada à mais extremada experiência em obras como “Vidas secas”, “Deus e o diabo na terra do sol”, “Os fuzis”. Mas revelava também a necessidade de somar a esta a ideia de filmar as classes médias nas cidades que se urbanizavam rapidamente, num Brasil que crescia na segunda metade do século XX.
Arnaldo Jabor foi o mestre de um cinema que outros haviam tentado, mas ninguém o fizera tão bem quanto ele. Um cinema que foi um guia de sentimentos, filmes que espelhavam o que se passava em sua geração e em sua classe social, um cinema que tem seu ápice em “Tudo bem”, o melhor filme urbano do Cinema Novo. E portanto, como não podia deixar de ser, um filme que nos obrigava a tentar entender o Brasil por um viés que tínhamos preferido ignorar para não sofrer como se sofre diante de um espelho fraturado.
O Cinema Novo foi a última voz do Modernismo em nossa cultura nacional. Ele completou a teoria que os modernistas nunca ousaram organizar, apesar dos esforços de Mário e Oswald, de Sérgio Buarque, de Jorge de Lima, de tantos outros que não se contentavam em criar mas tinham necessidade de entender porque estavam criando daquele jeito. Mais do que apenas artistas inspirados, os poetas, escritores, artistas plásticos, músicos, que o fizeram queriam sobretudo entender em que lugar do mundo o faziam. Como Arnaldo Jabor fez com seu cinema o melhor jeito de entender o país de um jeito mais próximo de nós.
O Cinema Novo foi o resultado de algo que não aconteceu só no cinema. Ele representou o encerramento do Modernismo no Brasil, e Arnaldo Jabor foi a síntese do que esse encerramento representou para todos nós. Ele vai fazer muita falta.